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Tragédia da Torre Grenfell mostra falhas da agenda de reabilitação

Na sequência desta catástrofe, os líderes políticos e da comunidade têm de trabalhar para reequilibrar a balança do poder no sentido dos moradores, afastando-a dos interesses dos promotores privados. Artigo de Joseph Downing, em The Conversation.
Torre Grenfell
A Torre Grenfell ardeu por completo em poucas horas. Foto sarflondondunc/Flickr

Eu cresci em habitação social. Ela garantia um lar estável e seguro (embora sobrelotado e frio) à minha família, para a vida inteira. Enquanto o fogo arrasava a Torre Grenfell, a apenas 500 metros de onde eu estava em Londres, pude testemunhar a terrível e completa destruição de 120 casas iguais à casa onde cresci. De manhã, atravessei o cordão policial e vi dezenas de bombeiros num estado de completo e abjeto choque.

Mas enquanto as cinzas assentam, fica claro que a ameaça de ruína vai muito para além da Torre Grenfell. De facto, as políticas que considero terem contribuído para este desastre foram aplicadas em muitos empreendimentos de habitação social, tanto no Reino Unido como na Europa. Ainda este ano, não muito longe de Grenfell, os moradores de Westminster votaram contra qualquer forma de renovação do seu Brunel Estate, visivelmente mal conservado. E muitos habitantes de Londres temem a perspetiva da “reabilitação urbana”, vendo-a como um tipo de limpeza social, o equivalente moderno da erradicação das barracas.

A preocupação dos moradores é que quaisquer melhoramentos os possam colocar num caminho escorregadio para a gentrificação e possível realojamento. Ao longo dos anos, assisti consternado à forma como sucessivos governos - Trabalhistas e Conservadores - depauperaram o parque habitacional disponível com esquemas como o “direito à compra”, ao mesmo tempo que baixavam os padrões das habitações remanescentes com os constantes cortes orçamentais. Confrontadas com este esgotamento e delapidação gradual, muitas casas vão definhando num estado de degradação, enquanto permanecem vivos os receios dos inquilinos de que possam perder as suas casas.

Isto não é só um problema britânico. Durante a minha investigação académica em França pude assistir a casos deploráveis de parque habitacional que não está apto para habitação humana, e onde as obras são sempre esquecidas. E onde existe reabilitação, muitas vezes é feita com pouca consulta aos moradores e ainda menor responsabilização.

Um aviso

À medida que os londrinos vão enfrentando as perdas trágicas na Torre Grenfeld, surgem notícias sobre a recente remodelação de que a torre foi alvo. No ano passado, o local sofreu uma remodelação no valor de 8.7 milhões de libras, com a instalação de um novo sistema de aquecimento, mais habitações nos andares inferiores e um novo revestimento no exterior do edifício, entre outros.

No entanto, um grupo de moradores afirma que ao longo do processo, as suas preocupações com o risco de incêndio - que tinham a ver com saídas obstruídas, falta de acessos de emergência defeitos na instalação elétrica - foram ignoradas por ambos os proprietários do edifício, Kensington and Chelsea Tenant Management Organisation (KCTMO), e a autoridade local, Royal Borough of Kensington and Chelsea.

Também se soube que o novo revestimento foi feito de alumínio - um material condutor de calor que nada fez para parar o avanço das chamas. Este tipo de revestimento é muito usado na Europa e no mundo, para melhorar o isolamento - e também o aspeto visual. Uma série de incêndios no Dubai, onde este revestimento é muito comum, obrigou as autoridades a mudarem os regulamentos de construção.

Enquanto estive em Roubaix, no norte de França, outro bloco residencial - a Torre Mermoz - também foi remodelada com revestimento de alumínio, no âmbito de uma reabilitação para acrescentar um centro comercial na base do edifício. Os moradores com quem contactei para a minha investigação estavam preocupados com a qualidade da remodelação e sentiam que ninguém ouvia as suas preocupações. Algum tempo depois, houve um incêndio que subiu pelo exterior do edifício, como vimos agora em Londres. Um relatório posterior da Fundação para a Investigação e Proteção contra Incêndios indicou que o revestimento combustível pode ter um papel no alastrar do incêndio, mencionando o fogo de Roubaix como um  exemplo disso.   

A KCTMO afirmou numa declaração que “é muito cedo para se especular sobre as causas do incêndio e o que contribuiu ao seu alastramento. Vamos colaborar totalmente com todas as autoridades para encontrar a causa desta tragédia”. Um porta-voz da autoridade local afirmou: “Temos ouvido algumas teorias acerca da causa do incêndio na Torre Grenfell. Todas serão investigadas a fundo no âmbito do inquérito formal que já se iniciou” A empresa de construção responsável pela recente remodelação de Grenfell também disse que iria “apoiar inteiramente” a investigação, e que a obra cumpriu todas as normas de construção, prevenção de incêndios, higiene e segurança no trabalho.

Restabelecer o equilíbrio

A agenda de reabilitação não só contribuiu para a destruição da habitação social - tornou também muito mais difícil responsabilizar os seus autores.

Desde que a reabilitação urbana se tornou uma prioridade política nos anos 1990, esses esquemas tornaram-se cada vez mais complexos. O New Labour apregoava a “terceira via” como uma forma de trazer fundos e empresas privadas para o financiamento da reabilitação. O objetivo era aproveitar a eficiência do mercado privado em obras de reabilitação e construção. O resultado foi um sistema labiríntico, em que as empresas privadas de construção ficaram com responsabilidades vastas e complexas em empreendimentos de habitação social.

A Torre Grenfell é exemplo disso. Detida pela autarquia local, é gerida pela KCTMO, que é uma organização separada de gestão de inquilinos, que por sua vez subcontrata as obras e reparações a outros operadores privados.

Todas estão afetadas: Grenfell (à esquerda) e as outras torres deste bairro londrino. Foto Nicobobinus/Flickr, CC BY-NC

Enquanto prossegue o inquérito a este desastre, é provável que os mecanismos de tomada de decisão e as estruturas responsáveis neste mecanismo complexo sejam cuidadosamente examinadas. Mas como os inquilinos da habitação social bem sabem, é provável que os investigadores tenham dificuldade em determinar ao certo o que aconteceu - e qual das partes deste mecanismo confuso é que foi responsável.

A tragédia da Torre Grenfell mostra os problemas das sucessivas reformas da habitação social no Reino Unido. Vejo demasiadas vezes o lucro e a reabilitação serem postos acima da segurança e da satisfação dos moradores. Na sequência desta catástrofe, os líderes políticos e da comunidade têm de trabalhar para reequilibrar a balança do poder no sentido dos moradores, afastando-a dos interesses dos promotores privados.

A minha avó cresceu nos terríveis bairros de lata que a Torre Grenfell substituiu. Quando lhe deram a escolha do realojamento, ela preferiu a incerteza e um novo começo numa casa pré-fabricada nos subúrbios. Quando liguei à minha família - que ainda vive nessa casa - congratulámo-nos com a sua escolha.
 


Joseph Downing é investigador doutorado pelo European Institute da London School of Economics, com trabalhos publicados no âmbito da sociologia em França. O seu atual projeto valeu-lhe uma bolsa Marie Curie, do  Centre national de la recherche scientifique (CNRS). Artigo publicado em The Conversation. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net.

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