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Serge Halimi: “Nem tudo empurra para a facilidade dos tuítes e dos like”

As mudanças no mundo e na imprensa e as razões pelas quais o Le Monde Diplomatique permanece como uma referência sólida foram os temas desta intervenção de Serge Halimi no 10º aniversário da edição portuguesa do jornal.
A edição portuguesa do Le Monde Diplomatique comemorou o décimo aniversário em novembro de 2016 com a presença do diretor da edição francesa, Serge Halimi.

No dia 15 de Novembro assinalaram-se os 10 anos da edição portuguesa do Le Monde diplomatique em edição da cooperativa Outro Modo. Num colóquio sob o lema «Mapear bloqueios, construir democracia» foram tratados diversos temas, da crise económica ao Estado social, passando pela geopolítica internacional. O texto que aqui se publica corresponde à intervenção de SERGE HALIMI, que versou as características, os dilemas e as potencialidades da paisagem mediática contemporânea. E a singularidade do projecto do Le Monde diplomatique neste contexto.


Não nos encontramos muitas vezes para celebrar aniversários.

Mas fazemo-lo, ainda assim, uma vez de dez em dez anos.

E este mês, justamente, é o 10.º aniversário da nossa edição portuguesa.

O Le Monde diplomatique é um pouco mais velho do que isso. Tem 62 anos.

Ainda há pouco, essa era a idade da reforma. Mas, com as políticas neoliberais, já ninguém atinge a idade da reforma.

Vamos portanto manter-nos activos durante muito tempo…

Em Maio de 1954 foi publicado o primeiro número do Le Monde diplomatique, dez anos depois da criação do jornal diário Le Monde.

Quando o primeiro número do diário Le Monde surge, em Dezembro de 1944, apenas com uma folha frente e verso, o essencial do país acaba de ser libertado das forças de ocupação nazis. Os jornalistas têm nessa altura a esperança de que a imprensa nunca mais volte a pertencer à propaganda do Estado ou aos poderes do dinheiro.

Passados 751 números do Le Monde diplomatique, qual a situação actual?

É inútil evocar tudo o que mudou no nosso jornal e no mundo: o exercício seria cansativo e, em suma, um pouco inútil.

Só nos últimos 10 anos, a paisagem internacional foi profundamente perturbada, em particular pela crise económica e financeira do século, a de 2008.

Uma crise que se torna crescentemente política e democrática. As eleições americanas, opondo dois candidatos quase igualmente detestados, e quase tão detestáveis um como o outro, são disso testemunho suficiente.

Todos conhecem o resultado destas eleições. Provavelmente falaremos nisso. Com tanto mais à vontade quanto, no que diz respeito a Donald Trump, o Le Monde diplomatique é, sem dúvida, um dos jornais que menos se enganou e que menos foi surpreendido pelo que acaba de acontecer.

***

Na frente do jornalismo, o que mudou desde a criação do Le Monde diplomatique foi em primeiro lugar o controlo dos media pelas maiores fortunas.

Na Europa, na América, na Ásia.

Como nos situamos nós neste universo? Somos independentes dos grandes grupos industriais e financeiros, da publicidade, da corrida à rendibilidade que conduz a cortar nos efectivos, a produzir informação low cost.

Somos independentes porque a nossa situação financeira é saudável, dado que depende quase exclusivamente das nossas vendas, das nossas assinaturas, do apoio financeiro dos nossos leitores.

Somos independentes porque a nossa situação financeira é saudável, dado que depende quase exclusivamente das nossas vendas, das nossas assinaturas, do apoio financeiro dos nossos leitores.

Não preciso de recordar aqui como são pouco numerosos pelo mundo fora os jornais importantes que conservaram a sua independência.

Nem como a lista dos proprietários dos grandes meios de comunicação social reproduz, de maneira quase exacta e praticamente por toda a parte, a lista das maiores fortunas.

Sem que já quase ninguém pareça notar que isso acontece nem mostre determinação em combater essa realidade.

Há alguns anos, o universitário americano Robert McChesney escreveu o seguinte: «Imaginem que o governo promulga um decreto que exige uma redução brutal do espaço atribuído aos assuntos internacionais na comunicação social, que impõe o encerramento dos serviços de correspondentes locais, ou uma grande redução dos seus efectivos e orçamentos. Imaginem que o chefe de Estado ordena aos órgãos de comunicação social que concentrem a sua atenção nas celebridades e em ninharias em vez de investigarem os escândalos associados ao poder executivo. Num tal cenário, os professores de jornalismo desencadeariam greves de fome, universidades inteiras fechariam por causa dos protestos. Contudo, quando são interesses privados em posição de quase-monopólio que decidem mais ou menos a mesma coisa não se verifica uma reacção assinalável.»

Robert McChesney prosseguiu o seu questionamento perguntando-nos: uma vez que nos dizem constantemente que vivemos em democracia, exactamente quando é que decidimos colectivamente – em que ocasião?, em que grande escrutínio? – que um punhado de muito grandes empresas, financiadas pela venda de publicidade e prioritariamente preocupadas em realizar lucros máximos, seriam as principais artesãs da nossa informação?

Ora, justamente, não é esta a nossa lógica.

E, nos tempos que correm, isso constitui uma força.

***

A outra grande tendência que marcou o mundo da comunicação social nos anos mais recentes é a aceleração da revolução digital que transforma os modos de ler, de partilhar, de se apresentar, de se documentar, de aprender.

Esta revolução digital ameaça a sobrevivência de muitos jornais. Em particular os que não dependem da benevolência de um grande grupo industrial e financeiro.

Tudo isto nos interessa, tudo isto nos diz directamente respeito.

E quando imaginamos o futuro do jornalismo, com os riscos habituais de nos enganarmos, temos em conta vários grandes movimentos concomitantes.

Um é mecânico, técnico, ainda que comporte também efeitos culturais importantes: a migração do papel para o digital.

Os efeitos desta transformação são contraditórios, ao mesmo tempo negativos e positivos.

Negativos: a cultura da gratuitidade, corrente na Internet, ameaça a nossa existência.

Ela impõe-nos, com efeito, uma concorrência imediata, gratuita e pletórica, quando nós não vivemos das receitas publicitárias, que se situam hoje abaixo de 1% do nosso volume de negócios.

Mas esta revolução digital comporta também efeitos positivos: abre-nos novos territórios.

Pelo menos por duas razões.

Por um lado, porque graças a ela nunca nos foi tão fácil difundir, tão rapidamente, no mundo inteiro e a baixo preço, os nossos artigos e o nosso património histórico e documental em várias línguas.

Por outro lado, mais paradoxalmente, porque a cultura da instantaneidade encoraja reacções imediatas, muitas vezes irreflectidas, por vezes provocadas por uma informação falsa.

Esta cultura da instantaneidade encoraja a tentação para o seguidismo, o exagero, a saturação. Não se tem tempo para reflectir, repete-se o que os outros disseram, deixa-se de investigar.

Porque esta cultura da instantaneidade encoraja a tentação para o seguidismo, o exagero, a saturação. Não se tem tempo para reflectir, repete-se o que os outros disseram, deixa-se de investigar.

Por exemplo, é mais fácil e muito mais rápido irmos à Internet ver o que disse Donald Trump de racista, sexista e xenófobo para, em seguida, nos indignarmos.

É mais fácil e mais rápido do que encontrarmo- nos com americanos que vão votar nele, questioná-los sem os desprezar a fim de compreendermos as razões deles.

Num caso, o dos insultos na Internet, precisaremos talvez de quinze minutos; no outro, o do diálogo empático com americanos, talvez seja necessário reservar quinze dias.

Agora sabemos o que é mais útil se quisermos compreender o mundo em que vivemos, talvez a fim de o mudar.

Agora, depois do fracasso dos media com o Brexit, depois do fracasso dos media com a campanha eleitoral americana, sabemos o que custa a tentação de cobrir tudo, de não perder nada, de atamancar tudo, de escrever em papel ou em blogues sem reflectir.

Sabemos o que custa a tentação de seguir a actualidade tal como ela é constituída pelos outros, porque ela é que seria a actualidade, em vez de dedicarmos tempo a perguntar o que poderemos nós trazer à actualidade que seja particular, singular, útil.

Em O Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley profetizou um universo capitalista em que a verdade não seria reprimida por um totalitarismo opressivo, como nas sociedades menos desenvolvidas, mas seria estilhaçada e afogada num oceano de pseudo-acontecimentos e de casos do dia (faits divers) insignificantes [1].

É claro que esta evolução é negativa, perigosa até, porque ela cega-nos e engana-nos.

Mas, dialecticamente, ela é bastante favorável a um jornal como o Le Monde diplomatique.

Como nos situámos quase sempre em contra-corrente face a esta tendência negativa e perigosa, a nossa singularidade pode tornar-se um trunfo ainda maior no futuro.

Com efeito, soubemos resistir à tentação do imediatismo, da precipitação, do enchimento.

Evitámos, assim, os riscos que estas tentações comportam.

Para dizer a verdade, não é coisa que nos interesse dar uma notícia, seja ela qual for, importante ou não, cinco minutos ou duas horas antes dos outros. Há dois anos, o jornal francês Libération recorreu ao seguinte slogan promocional: «Quando tudo anda depressa só há uma solução: andar ainda mais depressa».

Aparentemente foi uma má solução para este diário, uma vez que ele está, justamente, a perder constantemente velocidade.

Mas esta pseudo-solução indicou-nos, a contrario, o que não devemos prometer.

E sobretudo o que não devemos fazer.

No passado mês de Abril, o presidente Barack Obama assinalava o seguinte: «Nós vimos jornais fecharem. Os lucros diminuíram e o ciclo da informação acelerou-se. Os jornalistas sofrem, demasiadas vezes, uma pressão enorme para preencher o vazio e alimentar o monstro com comentários instantâneos, com rumores alimentados pelo Twitter, com mexericos sobre as celebridades e com assuntos sem interesse. Dentro de dez ou cinquenta anos, alguém que pretenda compreender a nossa época não vai certamente procurar os tuítes mais retuitados e os blogues que provocaram mais “like” [2]».

O presidente Obama devia estar a pensar na estratégia de comunicação do candidato republicano Donald Trump, em grande medida baseada em declarações provocatórias e difundidas pelos 13 milhões de seguidores da sua conta no Twitter.

***

Depois de os principais meios de comunicação social terem sido tomados por grandes grupos industriais e financeiros, a revolução digital, a terceira grande evolução que temos em conta, mais cultural e mais sociológica, é a priori promissora, do nosso ponto de vista.

O que está em causa é a persistência, e até o crescimento, de um público leitor desejoso de compreender o mundo e escapar ao tumulto da pseudo-actualidade.

Para nós é promissor, porque estes leitores potenciais são realmente em grande número, mesmo que não sejam maioritários.

Porque estes leitores mais numerosos, mais instruídos do que antes, mais desesperados com aquilo em que a informação se transformou, resistem. E exigem conteúdos… mais exigentes.

Já se sente despontar uma forma de cansaço perante a informação superficial em fluxo contínuo, perante o comentário instantâneo e previsível da mais ínfima (pretensa) actualidade, perante o último desvio de linguagem, o último «deslize» de uma personalidade pouco importante. Percebe-se, em suma, o desgaste rápido da indignação indignada.

Conteúdos que não encontram noutras paragens.

E que graças à difusão digital, graças às nossas quarenta edições em vinte e quatro línguas, nós podemos difundir pelo mundo inteiro.

Nem tudo joga contra nós, portanto, contra o jornalismo que praticamos. Nem tudo empurra para a facilidade dos tuítes e dos like (gosto).

Já se sente despontar uma forma de cansaço perante a informação superficial em fluxo contínuo, perante o comentário instantâneo e previsível da mais ínfima (pretensa) actualidade, perante o último desvio de linguagem, o último «deslize» de uma personalidade pouco importante.

Percebe-se, em suma, o desgaste rápido da indignação indignada.

O desejo de sair da sala em que todos vociferam.

Para parar e reflectir.

***

Parar e reflectir é, por exemplo, continuar a oposição ao Grande Mercado Transatlântico (TAFTA, TTIP).

Não utilizando a imagem fácil de uma águia americana que atravessaria o Atlântico para destroçar um rebanho de ovelhinhas europeias mal protegidas.

Mas antes assinalando que também nos Estados Unidos as autarquias correm o risco de serem, no futuro, vítimas de normas de liberalização comercial que as proibirão de continuar a proteger, como por vezes fazem, o emprego, o ambiente e a saúde.

Parar e reflectir significa compreender bastante depressa que, nesta matéria, não nos opomos a um Estado particular, mesmo que sejam os Estados Unidos, mas ao direito sagrado dos investidores de todos os países, incluindo o nosso.

E que é em combates deste tipo que forjamos solidariedades internacionais. As mesmas que hoje nos parecem, justamente, tão frágeis.

Parar e reflectir, em suma, a fim de escolher de olhos abertos. Sem simplificação, sem exagero.

A simplificação, o binário, o moralismo, a geometria variável e o exagero mobilizam por um instante, transportam-nos para o encantamento das certezas da infância.

Sobretudo em tempo de guerra.

Mas depressa fazem nascer o cinismo.

E o desejo de nunca mais voltarmos a escolher um campo, a tentação de desertar explicando que já fomos vigarizados.

Pela nossa parte, não somos espectadores encantados e a seguir desencorajados, depois desiludidos e por fim cínicos.

A nossa singularidade poderá por isso tornar-se um trunfo, na medida em que nos permite, espero, escapar à rapidez, à saturação, à veemência, à caricatura.

***

A nossa singularidade permite-nos escapar também ao narcisismo.

A disposição para o narcisismo já era cultivada pela sociedade de consumo. O historiador americano Christopher Lasch já em 1979 esclareceu a cultura do narcisismo, no tempo de Jimmy Carter.

Actualmente, esta disposição é cultivada pelas novas tecnologias (página Facebook com selfies, Twitter, etc.).

Também aqui podemos apostar numa inversão de tendência, num backlash – como dizem os americanos.

De um cansaço que se sente crescer em relação aos estados de espírito egocêntricos, às arengadas instantâneas, às más disposições teatralizadas e às pequenas depressões.

No Le Monde diplomatique, os autores raramente se exprimem na primeira pessoa; evitam a familiaridade e o entre-si, sem dúvida porque se dirigem a um público internacional que nem sempre compreenderia os piscares de olho entre vizinhos.

No Le Monde diplomatique, os autores raramente se exprimem na primeira pessoa; evitam a familiaridade e o entre-si, sem dúvida porque se dirigem a um público internacional que nem sempre compreenderia os piscares de olho entre vizinhos.

Um jornal em que todos os artigos poderiam começar com um «não vou falar-vos de mim» está necessariamente em ruptura com uma ideologia dominante que encoraja as revelações íntimas, as confidências, e que assim favorece a cultura liberal do indivíduo-marca. Ora, esta ideologia individualista despolitiza tudo à sua volta.

O Le Monde diplomatique, por seu lado, funciona como um intelectual colectivo, ao serviço do colectivo formado pelos seus leitores.

O que é próprio de um intelectual, sobretudo se ele for colectivo e pretender ser útil em vez de olhar para um espelho, é hierarquizar, escolher e saber afastar o que é secundário.

É organizar o seu plano, justificar as suas propostas, fazer compreender e mesmo partilhar a sua conclusão.

A viragem digital abriu um self-service caótico. No digital encontramos todos os artigos, e isso é bom, mas misturados e amontoados num mesmo plano.

Esta confusão e esta ausência de hierarquia não favorecem o pensamento crítico.

Com efeito, este precisa de referências, de modos de análise que permitam distinguir as causas das consequências, os factos menores dos acontecimentos estruturantes.

***

As novas tecnologias da informação acentuaram também a desqualificação do jornalismo.

Acentuaram a substituição progressiva nas redacções dos correspondentes e dos especialistas por profissionais da colocação online do último mexerico que dá que falar. Com o risco de a informação ser automatizada, isto é, de a sua recolha e organização serem confiadas a robôs.

Há já toda uma comunicação social online que se limita a agregar notícias em função das afinidades dos consumidores, elas próprias medidas pelos seus usos correntes.

Mas se os jornalistas se informarem e escreverem permanecendo atrás do seu computador, como hoje frequentemente acontece, em breve o seu emprego será deslocalizado para países onde a mão-de-obra é mais barata.

Tal como aconteceu, antes de chegar a eles, com os empregos dos centros de chamadas (call centers) dos prestadores de serviços informáticos.

Felizmente, alguns conteúdos da informação são mais facilmente automatizáveis do que outros.

A investigação de terreno e a análise, sobretudo quando remetem para um contexto histórico, quando comportam uma perspectiva internacional, um empenhamento intelectual e político, exigem uma competência, um saber-fazer que tão cedo um robô não possuirá.

E também aí nós temos alguma vantagem.

A investigação de terreno e a análise, sobretudo quando remetem para um contexto histórico, quando comportam uma perspectiva internacional, um empenhamento intelectual e político, exigem uma competência, um saber-fazer que tão cedo um robô não possuirá.

***

Há tendências a que podemos resistir – a perda de independência, o excesso de rapidez, a saturação, a veemência, o narcisismo, o empobrecimento dos conteúdos editoriais, o declínio da informação sobre os países estrangeiros, a automatização.

Mas há uma evolução que nos ameaça, tal como aos outros.

E que já nos atinge em cheio: a concorrência pelo tempo.

O «deixámos de ter tempo» que constantemente ouvimos à nossa volta.

E que por vezes também nós expressamos.

«Deixámos de ter tempo», quer se trate de nos encontrarmos ou de lermos, mesmo que na diagonal, todos os conteúdos na Internet que cem remetentes nos recomendam, por vezes sem os terem lido.

E que nós próprios propagamos.

«Deixámos de ter tempo» de fazer política, sindicalismo, de nos dedicarmos a tarefas colectivas, absorventes e que nem sempre merecem a consideração que deviam.

A leitura de um jornal exigente como o nosso disputa necessariamente aos outros usos o pouco tempo de que cada um ainda dispõe.

Nós dedicamos tempo a investigar, a pôr em perspectiva, a reler, a corrigir. Mas será que ainda vamos encontrar durante muito tempo leitores que dediquem tempo a ler-nos? É esta a nossa aposta.

Uma aposta que não está perdida à partida.

Porque alguns dos desafios que acabo de invocar não ditam a nossa sorte.

Para um jornal como o nosso, eles podem mesmo tornar-se trunfos, como demonstra a recuperação das nossas vendas e da nossa situação financeira.

A migração do papel para o digital pode facilitar a transmissão instantânea dos nossos artigos pelo mundo inteiro.

A cultura da velocidade, do mexerico e da imprecisão pode fortalecer, por contraste, a nossa exigência de recuo junto de uma população cada vez mais instruída e que está farta de ser bombardeada com informações e emoções com as quais não sabe o que fazer, a não ser consumi-las, absorvê-las, digeri-las e esquecê-las.

***

Porém, mesmo na hipótese mais favorável, subsiste uma problema fundamental.

Nós somos um jornal político.

E, se o recuo é bom, nos tempos que correm a esperança é melhor.

Ora, a esperança precisa de combustível. Onde é que o havemos de encontrar?

No combate sindical? Não se desenha qualquer movimento social europeu. Os sindicatos são muito marginalizados. Estão mais frágeis do que nunca (em França só 7% dos trabalhadores são sindicalizados) e divididos como quase nunca estiveram.

No combate político, então? Mas, na Europa, fora talvez de Espanha e de Portugal, onde é que as forças progressistas estão neste momento tão fortes e tão ofensivas como as da extrema-direita?

No Le Monde diplomatique podemos soprar nas brasas.

Podemos, graças às nossas dezenas de edições internacionais, e à edição portuguesa, como é evidente, transmitir as experiências e as resistências.

Mas não podemos suprir todas aquelas insuficiências.

No entanto, somos o espaço onde se formam análises, onde se preparam combates.

Cabe-nos, por isso, identificá-los.

Em suma, para que pode servir um jornal como o nosso? Para dar um pouco de coerência ao tumulto do mundo. Para escolher textos que consideramos valer a pena serem lidos, o que implica pôr os outros de parte. Para precisar que uma dada ideia não é compaginável com outra – mesmo quando as duas podem parecer sedutoras. Para pensar pausadamente nos seus próprios combates. Para identificar e dar a conhecer os que os travam.

E nem sempre é fácil. Em suma, para que pode servir um jornal como o nosso?

Para dar um pouco de coerência ao tumulto do mundo.

Para escolher textos que consideramos valer a pena serem lidos, o que implica pôr os outros de parte.

Para precisar que uma dada ideia não é compaginável com outra – mesmo quando as duas podem parecer sedutoras.

Para pensar pausadamente nos seus próprios combates.

Para identificar e dar a conhecer os que os travam.

Para que pode servir um jornal?

Em tempos de recuos e resignações, para os desbravar caminhos de novas relações sociais.

Sabemos que não dispomos de intermediários políticos que hoje tornem verosímil a aplicação próxima das nossas propostas.

Temos por isso de avançar, de dar conta dos debates e dos projectos, imaginando nós próprios estratégias de reconquista.

Como fizemos com a taxa sobre as transacções financeiras, o salário universal, o debate sobre a saída do euro, a auditoria à dívida ou o projecto de criar um tribunal constitucional internacional.

Não nos acusem, para falar como Roosevelt, de propor um método e, se ele fracassar, de propor outro. Desde que tentemos alguma coisa.

Partimos de uma certeza: ainda temos combates a travar.

Os de sempre: contra o poder hegemónico do capital, contra as dominações sociais e culturais, contra as hegemonias internacionais.

Mas sabemos que já não são exactamente as mesmas batalhas.

Um dos nossos velhos combates mudou de sentido. O terceiro-mundismo das décadas de 1950, 1960 e 1970, de que nos sentimos solidários, não era antes de mais o Sul contra o Norte.

Era em primeiro lugar, e sobretudo, a recusa por parte de movimentos e governos muitas vezes inspirados pelos ideais socialistas e que haviam acabado de aceder à independência, da dominação das empresas multinacionais, da política dos Estados ocidentais que apoiavam estas empresas, dos termos desiguais da troca.

Esta recusa tinha, portanto, um conteúdo político, progressista, em geral laico, quase sempre anti-capitalista.

Não estavam em causa identidades nem choques de civilizações.

Ora, hoje, muitos são tentados por este discurso identitário. O jornalismo e a universidade também.

Nós sabemos que a dominação do capital se tornou mundial.

Que as empresas multinacionais já não são apenas a General Electric, Apple e o Deutsche Bank, mas também a chinesa Foxconn, a brasileira Odebrecht e a russa Gazprom.

Que, quando o mundo muda, os trabalhadores imigrantes já não são apenas africanos sobreexplorados na Europa ou clandestinos mexicanos perseguidos nos Estados Unidos. São também nepaleses que morrem às centenas nas obras faraónicas no Qatar. E filipinos – muitas vezes mulheres, aliás – que se tornam empregadas domésticas em Hong Kong e nos Estados do Golfo.

Quando o mundo muda, os investidores arrogantes já não são unicamente os terríveis Yankees que querem apoderar-se dos vinhos de Bordéus mas oligarcas árabes, indianos ou russos que compram ao peso clubes de futebol, indústrias siderúrgicas, intelectuais e responsáveis políticos.

Sauditas que se interessam pelos criadores de aves bretões. Chineses a quem o porto do Pireu pertence.

E, longe de qualquer discurso identitário sobre o choque das civilizações, nós recordamos que o «Sul», os países emergentes que estão a desfazer a ordem colonial, engloba forças medievais e «elites» predadoras, mas também movimentos que as combatem.

O Sul é, ao mesmo tempo, o gigante taiwanês Foxconn e os operários de Shenzhen que defendem os seus salários.

Nos últimos sessenta anos o Le Monde diplomatique mudou muito, mas este racionalismo tranquilo, este universalismo, esta esperança progressista constituem as suas invariantes.

Não somos obcecados com o tema da decadência porque continuamos a apostar na emancipação.

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Algumas palavras para terminar. Este jornal acaba de atravessar intacto e com boa saúde a mais violenta crise económica da sua história.

Não é pouco, mas não é um acaso.

É que, quando os especialistas da comunicação social enumeram as qualidades que um jornal deverá reunir para ultrapassar esta crise, eles estão a desenhar em espelho o retrato do Le Monde diplomatique.

Um jornal que tem alguma coisa a dizer, alguma coisa que os outros não dizem: uma linha intelectual, uma grelha de análise ideológica, uma coluna vertebral (e não apenas grandes títulos a ventilar para colar à actualidade).

Um jornal que propõe uma visão global, mundial, dos problemas que se colocam no quotidiano, concretamente, a cada um.

Um jornal cujos artigos resultam de um verdadeiro trabalho de investigação, de reportagem, de escrita, de análise, e não apenas da reformatação de informações disponíveis noutros lugares.

Um jornal cuja decisão última compete à equipa que o faz. Ao nosso nível de vendas, em França, não há muitos a poder afirmá-lo.

Ser um jornal livre, formular um projecto, resistir e permanecer é – assim espero e creio – ter futuro.


Artigo publicado no site da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique.


Notas

[1] Shlomo Sand, La fin de l’intellectuel français, La Découverte, Paris, 2016, pp. 195-196.

[2] 28 de Março de 2016 : «We’ve seen newsrooms close; the bottom line has shrunk; the news cycle has as well,” Obama said. “And, all too often, there’s enormous pressure on journalists to fill the void and feed the beast with instant commentary and Twitter rumors, and celebrity gossip and softer stories».

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