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Reportagem: Poluição na Ribeira dos Milagres

O mau cheiro na Ribeira dos Milagres, em Leiria, afeta as populações que convivem diariamente com o impacto ambiental das mais de 250 suiniculturas da região. O esquerda.net foi conhecer o problema, exemplo da falta de regulação e sustentabilidade do setor agropecuário.
Ribeira dos Milagres, em Leiria. Foto de Paulo Cunha/Lusa.

Esta reportagem está incluída no quarto programa do Mais Esquerda, cujo resumo pode ser visto aqui, a reportagem sobre a Ribeira dos Milagres aqui e o programa na íntegra aqui.

Dez quilómetros a norte de Leiria fica a Aldeia dos Milagres. À primeira vista, a paisagem fica marcada pelo enorme santuário barroco de mármore, construído no século dezoito em honra de um milagre que, reza a lenda, ali aconteceu. Mas não é preciso muito tempo para que a atenção se desvie da imponência arquitetónica do local, e passe a concentrar-se no cheiro do ar e da quantidade de moscas que pairam.

“É insuportável, realmente, a gente estar aqui no meio de um santuário que, realmente não merecíamos e deveria haver outras condições que não estas”, afirma Agostinho Paulo, dono do café da aldeia. 

Ao longo dos 15 quilómetros da ribeira que corre ao lado da igreja – que em tempos foi um dos principais locais de romaria do país – instalaram-se cerca de 250 suiniculturas que fazem frequentemente descargas ilegais para a água que corre para o Rio Lis, antes de desaguar na Praia da Vieira. 

“Realmente isto começou com alguma poluição, mas pelas indicações tem vindo a piorar, pelo menos é o que as pessoas todas se queixam e quem quer que passe pela Ribeira pode constatar isso mesmo, como é óbvio”, comenta Vítor Alves. “Quando vim para cá era limpinha a água, era limpinha, com peixinhos e tudo e agora está muito porcalhona, já se vê animais no rio, pronto, está horrível. E o cheiro em minha casa também”, acrescenta Florinda Inglês, outra residente na aldeia.

O cheiro é nauseabundo, nota-se perfeitamente que houve alguma descarga para a Ribeira, é nítido.

A exploração suinícola da zona começou com uma unidade, de construção moderna para a época e de dimensão considerável. O sucesso desta suinicultura levou a que muitas outras seguissem o seu exemplo. Na sua esmagadora maioria, não têm qualquer tipo de condições.

“É mesmo aquele cheiro a pecuária, mesmo aquele cheiro intenso de porcos”, descreve Gracinda Maria Serrarinho. “O cheiro é nauseabundo, nota-se perfeitamente que houve alguma descarga para a Ribeira, é nítido” acrescenta Sérgio Pedro, que também vive nos Milagres.

Se noutros tempos a Ribeira servia para as famílias se banharem, hoje é absolutamente imprópria para o uso humano. “Eu não, mas o meu pai sim e os meus cunhados, que são mais velhos e eram de cá dizem que iam para lá tomar banho, iam para lá fazer brincadeiras, andar de barco e tudo” descreve Gracinda Maria Serrarinho. E hoje em dia? “Não, nem pensar, não se pode mesmo ir para lá, é horrível. É um cheiro e depois há aquela porcaria, parece lodo atulhado, não dá mesmo para entrar lá dentro”.

Dos 2500 m3 de efluentes produzidos todos os dias, apenas são tratados, em média, 84m3 na ETAR. Os restantes resíduos sem tratamento são simplesmente lançados em linhas de água como a Ribeira dos Milagres ou despejados ali à volta: nas margens do Rio Lis, nos pinhais ou nos eucaliptais mais próximos.

Dos 2500 m3 de efluentes produzidos todos os dias, apenas são tratados, em média, 84m3 na ETAR. Os restantes resíduos sem tratamento são lançados em linhas de água como a Ribeira dos Milagres ou despejados nos terrenos à volta

“Este é um problema da Ribeira dos Milagres, mas é mais abrangente, há todo um problema na bacia higrográfica do Lis, mas em relação a isto há que desmistificar algumas coisas que estão na cabeça das populações. No setor primário no distrito de Leiria, apenas 3% da população é que trabalha efetivamente no setor primário. Desses 3%, uma parte muito ínfima trabalha nas suiniculturas. Além disso, nessa parte ínfima estão incluídos os próprios suinicultores. Portanto, há uma parte ínfima de industriais, suinicultores, que está a ter imensos lucros, em contrapartida com um grande crime ambiental que se está a praticar porque é, efetivamente, um grande crime ambiental” acusa Manuela Pereira, deputada municipal do Bloco.

Muitos suinicultores queixam-se que o tratamento dos resíduos sai caro. Mas cada metro cúbico tratado na ETAR Norte custa apenas 70 cêntimos. Um camião cisterna leva cerca de 20 m3, ou seja, paga pelo tratamento cerca de 14 euros. O maior custo acaba por ser o do transporte. Se todos os suinicultores tratassem os resíduos que produzem, as estações de tratamento não teriam capacidade para dar resposta aos 2500 m3 de efluentes produzidos diariamente.

“Na ETAR Norte foi feito um investimento grande para tratar 700 m3/dia e havia um projeto inicial para uma ETES (Estação de Tratamento de Efluentes Suinícolas) para tratamento das suiniculturas com uma capacidade para 1500 m3. 1500 mais 700, 2200. Estaria próximo daquilo que é produzido e esse projeto, sim, deveria ter pernas para andar” explica Rui Crespo, porta voz Comissão Ambiente e Defesa da Ribeira dos Milagres, que monitoriza e frequentemente denuncia as descargas na Ribeira. 

Muitos suinicultores queixam-se que o tratamento dos resíduos sai caro. Mas cada metro cúbico tratado na ETAR Norte custa apenas 70 cêntimos. Um camião cisterna leva cerca de 20 m3, ou seja, paga pelo tratamento cerca de 14 euros.

Mas este projeto foi abandonado e o novo plano passa pela nova Estação de Tratamento de Efluentes Suinícolas com capacidade para 900 m3/dia. Ela irá complementar a ETAR Norte, cujo recorde de tratamento num dia não ultrapassou os 270 m3. 

“Como é que anunciam, agora, o tratamento de 900 m3 na nova ETES que provavelmente vai ser construída, mais 270, perfaz 1170. O resto, pergunto, o que vão fazer a outros 1170 ou 1200 ou 1300 m3 que não podem, que não há capacidade para serem tratados? Não é uma solução, longe de o ser, é um mau investimento e tem que ser desmistificada esta mentira, tem de ser desmontada, porque a construção da nova ETES não vai resolver nada tendo em conta que nem metade vai tratar dos efluentes produzidos”, prossegue Rui Crespo.

“E neste caso o governo é responsável por encontrar uma resolução para isto, os problemas não podem ser adiados e sendo feitas pequenas soluções que depois efetivamente não resultam, não passam de pequenas tentativas, formas mascaradas de parecer que estão a resolver o problema e não estão” conclui Manuela Pereira. 

Ao fim de décadas a sentir o cheiro de um dos maiores atentados ambientais do país, feito à vista de todos, a população da aldeia dos Milagres continua a reclamar por justiça e por respeito.

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