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“As referências históricas são um antídoto contra o totalitarismo”

No seu mais recente livro, o jornalista Pedro Prostes da Fonseca mergulha na Guerra Civil de Espanha (1936-1939) e narra a coragem daqueles que puseram em risco as suas vidas para salvar centenas de pessoas em fuga de um dos conflitos mais sangrentos ocorridos em solo europeu. Ao esquerda.net, o autor lamenta o esquecimento a que foi votado o tenente Augusto Seixas e afirma que a sua ação devia ser enaltecida pelas autoridades portuguesas.
Pedro Prostes da Fonseca. Foto da Câmara Municipal de Grândola

Decidiu escrever um livro intitulado Contra as Ordens de Salazar (matéria prima edições)  sobre um conflito quase ignorado pela generalidade dos historiadores portugueses. Está a tentar reparar essa falha?

De maneira nenhuma. Importa dizer que este livro não é um ensaio de natureza histórica sobre a Guerra Civil de Espanha, mas uma investigação de carácter jornalístico sobre pessoas, na sua grande maioria gente simples e desconhecida, que teve a coragem de desobedecer ao regime salazarista e esconder muitos daqueles que em desespero fugiram da guerra, das perseguições e da morte.

A atual crise de refugiados teve alguma influência na decisão de escrever este livro?

Diria que foi decisiva porque é um drama que está muito presente e no fundo é disso que falamos, ou seja, de pessoas que legitimamente querem salvar as suas vidas refazendo-as, se possível, noutro lugar onde se sintam em segurança.

Como é que analisa o tratamento dispensado aos refugiados?

Acho vergonhoso que os dirigentes políticos da Alemanha e de outros países tenham cinicamente pago para se verem livres do problema o que prova que o dinheiro, hoje, é quem mais ordena.

Nas sociedades atuais já não há lugar para a solidariedade?

Com certeza que há embora os valores que atualmente se realçam se situem no campo do individualismo a que muitos cedem talvez devido a uma certa massificação do pensamento que é ampliado pela falta de leitura e também de referências histórias. Compete-nos assim defender a democracia cuja essência radica na solidariedade.

O tentente António Seixas salvou centenas de refugiados da Guerra Civil de Espanha

No seu livro, o tenente António Augusto de Seixas (1891-1958) emerge como uma figura que desafiou o regime ao dar guarida a centenas de espanhóis que cruzaram a fronteira para não serem mortos. Quem foi este homem?

Eu não pretendi fazer uma biografia sobre ele. Não porque não o merecesse mas porque em rigor não há muita informação disponível. O tenente Seixas que lutou no cerco a Chaves e até foi ferido era um republicano, um democrata que não gostava nem de Salazar nem de Franco.

E por isso arriscou a sua carreira e até a sua vida?

Foi um homem que pugnou sempre pela justiça e que devido ao seu humanismo não ficou insensível ao sofrimento daqueles que precisavam desesperadamente de ajuda. O seu ato heróico salvou entre 300 a 400 vidas.

Para isso, criou um campo no Alentejo para albergar refugiados de guerra e conseguiu ludibriar as forças do regime salazarista, nomeadamente a GNR e a PVDE (antecessora da Pide) convencendo-as de que este era legal. E fez isto sozinho.

Mas é praticamente desconhecido entre os portugueses.

Esta guerra não foi portuguesa. Em Espanha encontramos várias referências sobre os seus atos e até símbolos que lhe prestam homenagem. No entanto, no nosso país há uma escassa informação sobre aquilo que ele fez e esse facto é, na minha opinião, injusto.

Considera que ele foi um herói?

Quem se expõe desta forma para salvar vidas de pessoas que nem conhece é obviamente um herói.

A palavra não o assusta?

No prefácio do livro a [historiadora] Irene Flunser Pimentel escreveu que “a palavra herói serve para ser utilizada”. Eu estou de acordo e acrescento que Portugal precisa de heróis.

Mas é uma expressão que se presta a alguns equívocos.

Se for mal utilizada. Há que perder os complexos relativamente à História do país porque se assim não for caminhamos para a diluição da memória que é algo que não faz sentido e pode ser perigoso. As referências históricas são um antídoto contra o totalitarismo e nós precisamos de pessoas com coragem que nos deem exemplos como aqueles que foram protagonizados pelo tenente Augusto Seixas. O povo português tem de ganhar capacidade para se unir e mobilizar em torno das grandes causas que determinam o nosso futuro coletivo.

Tratamos mal a nossa História?

Sem dúvida que sim. E a ausência de conhecimento do papel que muitos portugueses anónimos tiveram nesta guerra é disso um exemplo. Nas zonas fronteiriças houve atos de bravura extraordinários feitos por gente que podia até desconhecer os fundamentos ideológicos do Estado Novo, mas não hesitou em desobedecer a um regime repressivo quando esteve em causa a vida de muitas centenas de pessoas.

É preciso ter em conta que só em 2015 foi inaugurado em Barrancos um memorial evocativo da ação deste homem durante a guerra.

É possível comparar o tenente Augusto Seixas ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes (1885-1954)?

É um exercício perigoso e por isso eu não o fiz mesmo tendo o respaldo da Irene Pimentel que no livro estabelece esse paralelo. No entanto, eu não me atrevi a fazê-lo.

Porquê?

Entre os dois há situações em comum sejam boas ou más mas não podemos esquecer que Aristides de Sousa Mendes era um diplomata o que lhe dava acesso aos círculos do poder algo que o tenente Seixas nunca teve porque estava numa zona rural do Alentejo, longe dos centros de decisão e era apenas um militar da Guarda Fiscal.

Mas ambos salvaram pessoas da morte.

Em contextos diferentes. Independentemente dos números assustadores causados pela guerra civil de Espanha (cerca de meio milhão de mortos), esta não é comparável à II Guerra Mundial e à devastação que provocou.

E depois de terem sido afastados das suas carreiras os dois tentaram a sua reintegração.

Não penso que isso ofusque aquilo que fizeram. O tenente Seixas - que já tinha tido tido problemas com a hierarquia militar e por isso foi destacado de Trás-os-Montes de onde era natural para o Alentejo - esteve preso durante dois meses no Forte de Elvas e depois foi reformado compulsivamente. A sua reintegração ficou a dever-se ao facto de ele ter sempre ter dito que não fez aquilo que tinha feito. Manteve a sua convicção o que significa que até ao final da vida não abandonou a sua atitude crítica em relação ao regime. Aliás, devo acrescentar que falei com alguns familiares ainda vivos que me asseguraram que ele nunca teve qualquer simpatia política por Salazar.

Mas o Aristides de Sousa Mendes ficou definitivamente fora da carreira diplomática e morreu na miséria.

Como disse, há diferenças entre ambos e por isso eu não arrisco estabelecer um paralelismo óbvio entre os dois.

O seu livro dá também um contributo interessante para desmontar a neutralidade de Salazar nesta guerra.

Apesar do relacionamento entre Salazar e Franco ter sido sempre marcado por alguma frieza, a verdade é que o regime ditatorial português esteve sempre ao lado dos nacionalistas.

O Alzamiento Nacional (levantamento) foi preparado em Lisboa por aqueles que não aceitaram a vitória da Frente Popular nas eleições de Fevereiro de 1936, tendo constituído aqui a chamada “embaixada negra”. O general José Sanjurjo (1872-1936) morreu quando o avião que o devia transportar a Espanha para chefiar a sublevação caiu na Quinta da Marinha, em Cascais. Foi a partir daqui que Franco emergiu como líder máximo da revolta que mais tarde levou à instauração do regime fascista espanhol.

O conflito matou cerca de meio milhão de pessoas

E as autoridades portuguesas estavam ao corrente dessas movimentações?

Estavam. E utilizaram todos os meios para desacreditar os republicanos em detrimento dos nacionalistas. A imprensa e vastos setores da Igreja passaram para a população a ideia que os republicanos eram a personificação do caos. Basta ler os jornais da época.

Na apresentação do livro, o historiador Fernando Rosas disse que para Salazar a guerra era entre aqueles que defendiam a Europa cristã e os seus valores e a desordem defendida pelos comunistas. Está de acordo?

A guerra teve uma marca ideológica muito forte e Salazar só podia estar do lado dos fascistas espanhóis que tiveram também o apoio da Alemanha nazi e de Mussolini.

Este é o seu terceiro livro depois de ter já ter publicado A Porta para a Liberdade (2014) sobre a história do militar da GNR que ajudou Álvaro Cunhal a fugir Forte de Peniche em 1960 e Assassino de Catarina Eufémia (2015). Pretende continuar nesta linha de investigação?

Apenas se conseguir acrescentar algo de novo ao que já foi escrito. Eu costumo dizer que faço reportagens longas e há muitos aspetos da nossa História que carecem de aprofundamento.

Estes livros pressupõem muitas horas de investigação e contactos diversificados. Quanto tempo gastou na pesquisa de elementos para escrever este livro?

Sensivelmente um ano.

É difícil fazer investigação em Portugal?

Para este último livro recolhi a maior parte das informações em Espanha mas sei por experiência própria que em Portugal há falhas nos serviços dos arquivos. Há documentação muito importante que corre o risco de se perder se não houver um plano de reorganização. Há arquivos onde é difícil senão impossível encontrar aquilo que se pretende e ainda outros que não têm condições mínimas para acautelar o bom estado do acervo que possuem e assim este fica sujeito à degradação imposta pela passagem do tempo. É preciso ter isso em atenção.

Entrevista de Pedro Ferreira

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