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Precários do Estado: "Não aceitaremos critérios para excluir pessoas"

Comentário do deputado bloquista José Soeiro sobre a situação dos precários do Estado e medidas de combate à precariedade.
Precariedade em debate com José Soeiro.

José Soeiro é sociólogo e o seu comentário está incluído no décimo primeiro programa do Mais Esquerda, que pode ser visto na íntegra aqui. O comentário seu comentário pode ser lido e visto em baixo. Os restantes comentários em debate no mesmo programa podem ser vistos em separado aqui (de Joana Simões Piedade, sobre refugiados) e aqui (de Cristina Roldão sobre racismo na educação).

O governo anda a adiar a divulgação do relatório sobre os Precários do Estado, que informações prevês que tenha e que consequências terá a sua publicação? 

É expectável que este relatório tenha um diagnóstico sobre o conjunto dos trabalhadores precários do Estado, da administração pública e setor empresarial. O governo comprometeu-se em divulgar o relatório até ao final do mês de outubro, chegou o final do mês de outubro e não divulgou. Disse que precisava de trabalhar mais os dados, de recolher mais dados, disse que até ao fim do ano tornaria público o relatório, o fim do ano passou, estamos em 2017 e o relatório não é público. Dizem-nos agora que até ao final deste mês o relatório será público. 

Qual a possível razão destes atrasos?

Acho que não é a melhor forma de começar o processo de integração dos precários, adiando a divulgação de um instrumento que é fundamental e cuja transparência do dignóstico é uma condição de credibilidade do próprio processo de integração dos precários. Ou seja, o pior que pode acontecer é começar-se a gerar uma desconfiança de que o adiamento e a sucessiva reformulação deste relatório antes de ele ser público poderá servir para ele ser trabalhado de modo a tornar invisíveis ou retirar algumas pessoas, realidades, condições de precariedade desse diagnóstico. O que expectável é que esse relatório tenha a totalidade das situações de trabalhadores precários do Estado. 

Já se conhecem alguns dados?

Há alguns dados que são públicos, a Direção Geral da Administração e do Emprego Público diz que há 94 mil trabalhadores com modalidade precárias de contratação com a Administração Pública e o setor empresarial do Estado. Se somarmos os contratos de emprego e inserção que são mais 16 mil, se somarmos as bolsas da FCT, ou pelo menos uma parte delas, teremos mais alguns milhares. 

Depois ainda há a realidade das pessoas que indiretamente trabalham para o Estado de forma intermediada por empresas de trabalho temporário, ou por falsos outsourcings.  Se somarmos esta realidade, estaremos a falar de bem mais do que 100 mil pessoas. 120, 130, 140 mil pessoas, não sei ao certo quantificar. 

Pode ser que uma parte destas pessoas estejam numa situação de uma verdadeira prestação de serviços, ou de um verdadeiro contrato a termo. Mas a esmagadora maioria destas pessoas têm um recibo verde, um contrato de emprego e inserção, um contrato a prazo, um contrato de trabalho temporário que é uma forma de dissimular a sua relação com o Estado e o facto de elas estarem a ocupar uma função permanente que é fundamental ao funcionamento dos serviços da administração pública. Das escolas, dos hospitais, das bibliotecas, dos museus, do serviço público de rádio, etc. 

A nossa expectativa é que o relatório seja divulgado, temos insistido muito publicamente junto do governo para que o faça. O relatório é a peça inicial e fundamental para que se inicie este processo de integração e, portanto, estamos a aguardar com expectativa e analisaremos também, comparando com os dados existentes. Por isso o apelo que temos feito aos próprios precários para que, organismo a organismo, as pessoas se organizem para elas próprias fazerem identificação da sua realidade, para depois podermos confrontar a identificação que as pessoas fazem com a que foi feita pelas direções dos serviços.

A maior parte da população ativa continua, ainda assim, precária ou está desempregada. O que é que deveria ser feito, já em 2017, para combater esta situação?

Sobre este processo de regularização dos precários do Estado é preciso que inclua toda a gente e que não se utilizem critérios como “tem que ter horário completo para fazer parte do processo de integração”. Isso é um absurdo, o horário completo não é uma condição de laboralidade. Um professor que não tenha horário completo, não é por isso que não deva ter um contrato no horário que faz, ou um formador do IEFP, ou outra trabalhador qualquer. Portanto, que não se utilizem critérios que só têm o objetivo de excluir pessoas de acederem a estes direitos. 

No setor privado, a precarização tem tido muitas vias, e é preciso tentar atacá-las todas, e isso implica coisas diferentes. A precarização tem sido feita por via de alterações à legislação laboral, no sentido de aumentar as modalidades precárias de trabalho. No caso do trabalho temporário, a possibilidade de recurso a estas modalidades é um escândalo, pois permite que muitas situações que não são de trabalho temporário entrem como tal. 

Além disso, permite substituir funções dos Centros de Emprego, ou seja, do serviço público de colocação de mão de obra, por negócios de alugar pessoas, ou seja, pela intermediação de empresas privadas cujo negócio é ficarem com uma parte da riqueza que pertence aquele trabalhador. Este é um exemplo de alterações na legislação laboral que incentivaram a precariedade legal. 

E também há a precariedade ilegal.

Sim, depois, há uma outra faceta da precariedade que é aquela que se faz à margem da lei, transgredindo a lei, violando a lei. Uma parte muito importante das situações de precariedade em Portugal, à luz da lei, são ilegais, mas continuam a existir. Porquê? Porque não existe fiscalização e porque a lei não é efetiva. Portanto há um outro domínio em que é preciso intervir, que é reforçar o poder da Autoridade para as Condições do Trabalho, dar mais meios de fiscalização, e permitir que os trabalhadores acedam aos seus direitos e à justiça laboral. 

Muitas vezes isso implica que não se pode deixar sobre a responsabilidade dos trabalhadores fazerem as denúncias, porque os trabalhadores precários são quem tem menos condições de denunciar, porque são quem está mais vulnerável. É por isso que temos defendido, por exemplo, que o mecanismo que foi criado pela iniciativa legislativa dos precários seja aplicado ao conjunto de situações de dissimulação de uma situação laboral. Nos falsos recibos verdes, nas falsas bolsas, nos falsos estágios. Deve ser o próprio Estado, a, quando identifica essa situação, a garantir o reconhecimento da situação laboral e, se for o caso, levar a empresa a tribunal e não imputar ao trabalhador essa responsabilidade, porque ele é quem tem menos condições objetivas para o fazer. 

Finalmente, a precariedade tem sido também, muitas vezes, incentivada pela transformação de relações de trabalho, aparentemente, em relações de negócio. O caso da Uber é um exemplo em que se ocultam relações de trabalho como se elas fossem relações comerciais entre um cliente e um prestador de serviços. Tentando, por essa via, transformar cada pessoa num empresário mas que, na verdade, essa pessoa não é um empresário, não é um prestador de serviços, não é uma empresa, mas é um trabalhador por conta de outrem, que deveria ter um contrato, proteção social, etc.

E que mecanismos de criação de emprego propões?

O tema não é fácil, mas há algumas coisas que se podem fazer. Em primeiro lugar, investimento público. Tem que haver investimento público para haver criação de emprego, e aí, o debate sobre o setor financeiro é essencial. Enquanto estivermos a por dinheiro em bancos para depois os vender por tuta e meia aos privados, como se está a discutir agora sobre o Novo Banco, temos menos condições para a economia ter acesso a crédito e poder criar emprego. 

Em segundo lugar, há medidas do âmbito laboral. O que aconteceu em Portugal ao longo dos últimos anos foi que, ao embaratecer para metade o valor das horas extraordinárias, ao prolongar os horários de trabalho se evitou a criação de dezenas de milhares de postos de trabalho. Se não tivéssemos o abuso que existe nas horas extraordinárias, só isso permitiria criar dezenas de milhares de postos de trabalho. Se aplicássemos a redução do horário de trabalho, que foi agora reposta na administração pública, ao setor privado, isso permitiria também criar postos de trabalho. 

Por último, precisamos de muitos postos de trabalho em algumas funções sociais, como na educação ou na saúde. Portanto, diminuir o horário de trabalho, distribuir o trabalho que existe, combater o abuso das horas extraordinárias, ter programas de investimento público, seja nos chamados empregos climáticos, seja nos serviços públicos, são alguns caminhos possíveis para começar a dar respostas a este problema.

 

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