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Precário do Estado: “Continuo a olhar para o futuro com medo e ansiedade”
Temporário aos 19 anos
Nestes breves instantes queria contar-vos a minha história, mas começando pelo início.
Entrei para o dito “mercado de trabalho” quando tinha 19 anos. Inscrevi-me em tudo o que era local de procura de emprego, e a certa altura fui chamado pela Select Recursos Humanos, uma empresa de trabalho de temporário (ETT). Fui destacado para trabalhar na Efacec como assistente de operário.
O trabalho não era o melhor, mas os quase 600€ - com horas extra, muitas delas noturnas - chegavam para cigarros, café e outras inutilidades que agora não guardo memória. 600€ mais uma t-shirt com o logótipo da ETT para sermos devidamente distinguidos dos restantes trabalhadores. E éramos tratados por “temporários” para não nos esquecermos dessa condição. A t-shirt ainda a guardo para fazer trabalhos temporários, mas apenas em casa.
Meses mais tarde saí e fiquei à experiência numa empresa de telecomunicações, hoje a NOS. A experiência era simples: tinha que vender contratos de telecomunicações, porta a porta, a outras empresas, e tinha um mês para o fazer, a troco de poucas centenas de euros por baixo da mesa. Caso conseguisse pagavam-me esse dinheiro e teria direito a um contrato por 3 meses. Pedi ao meu pai o carro e um fato emprestado, que precisava mais um terço de mim para o encher.
Ao fim de 3 semanas não consegui vender um único contrato, porque nunca fui bom nas vendas. E se estão a pensar que pelo menos pagaram-me essas 3 semanas, então lamento desiludir-vos, porque com o lucro das empresas não se brinca.
Segui a trabalhar em part-time nos centros comerciais, e para várias lojas, enquanto tirava a licenciatura. Eu e todos os que trabalhavam, só no papel cumpríamos 4 horas de trabalho, até à meia-noite, na realidade nunca saímos antes das 1, e nas épocas de maior movimento, frequentemente, saímos às 4 da madrugada.
Sempre em part-time, e o meu salário parava de contar à meia-noite.
Tínhamos ainda uma comissão pelas vendas que cada um fazia, para, diziam, nos incentivar e sermos mais dinâmicos e pró-ativos. Com o detalhe que era o chefe que registava as vendas, por isso, as comissões eram calculadas com o carteirómetro - o medidor da carteira do chefe ou do patrão.
Licenciatura e mestrado, mas precariedade no Estado
E assim continuei até terminar a licenciatura em educação social. Entretanto, já fiz uma especialização e um mestrado.
Alguns meses depois de terminar a licenciatura comecei a trabalhar na minha área de estudos, sempre com contratos a prazo para instituições de solidariedade social, e com salários, naturalmente, nivelados por baixo. Mas era o que gostava de fazer, por isso continuei.
Em 2012 concorri ao concurso público do ministério da educação, para técnicos especializados, para trabalhar nos agrupamentos de escolas TEIP. Consegui colocação em Lisboa. Um ano depois, através do mesmo concurso, fiquei colocado num agrupamento de escolas aqui no Porto, e onde continuo a trabalhar desde então. 5 anos no total.
Todos os anos a história repete-se. Para mim e para centenas de colegas educadores sociais, assistentes sociais, psicólogos, animadores, mediadores, etc. Já para não falar dos professores que se encontram na mesma situação.
Trabalhamos 9/10 meses por ano, com alguma sorte 11. Os contratos terminam a 31 de agosto. A única certeza que temos é que o dia 1 de setembro é passado no centro de emprego.
Não temos subsídio de desemprego, porque nunca trabalhamos um ano completo.
Não temos carreira profissional. Perspetiva de evolução é para esquecer.
Há muitos casos de colegas que nem horários completos conseguem.
Todos os anos estamos sujeitos a um concurso para poder continuar a trabalhar. Mesmo que todos queiram dar continuidade ao trabalho, o concurso lá estará para impedir essa continuidade. Isso significa todos os anos enviar o portfólio e fazer a entrevista. E o júri do concurso são os nossos colegas, professores. Os mesmos com quem trabalhamos todos os dias, que já nos conhecem e que nos querem lá.
É bom saber que somos necessários, que confiam no nosso trabalho e querem a nossa continuidade. Mas querem saber o mais curioso. O nosso contrato é, todos os anos, para satisfazer necessidades temporárias do Estado. Há pessoas que satisfazem as necessidades temporárias do Estado há quase 20 anos, altura em que começou a integração dos técnicos nas escolas.
Queria ainda lembrar as dezenas de desempregados que já conheci nestas duas escolas, e que foram integrados através dos contratos de emprego-inserção (CEI). Lembro-me, particularmente, de um senhor de trato afável e empático, com os seus 55 anos e uma vida de trabalho na indústria, e sem nunca ter tido formação em educação, era adorado por todos os alunos. Tinha um horário completo como todos os desempregados ao abrigo do CEI.
Foi expulso do nosso país, no período da troika e do anterior governo, porque o subsídio de desemprego e as poucas dezenas de euros que recebia do CEI não eram suficientes para pagar as contas de casa, quando também tinha que sustentar a família da filha que, entretanto, ficou desempregada. Apenas consegui partilhar com ele uma revolta comum.
Esta história representa-me só a mim. Mas acreditem que em todos os locais onde trabalhei, e as muitas pessoas que conheci, esta minha história entrecruza-se com a delas.
“Olhar para o futuro com medo e ansiedade”
Não quero parecer melodramático com aquilo que vou dizer. Hoje com 32 anos, um filho com 2 e outro que nascerá em abril continuo a olhar para o futuro com medo e ansiedade. O mesmo medo e ansiedade quando planeámos ter o Francisco. Só pensávamos: “E se amanhã não temos trabalho?” Para logo de seguida afastarmos essas incertezas com um: “Arriscamos?” - como se se tratasse de um investimento especulativo ou uma aposta desportiva.
Por último, queria deixar uma nota relativamente às notícias de ontem. O governo apresentou - e vou tentar não tropeçar na língua - o relatório sobre o levantamento dos instrumentos de contratação de natureza temporária na Administração Pública. Sem surpresa, o setor da Educação é onde existe mais precariedade. A palavra precariedade era muito pesada para colocar no título - não tão pesada quanto as pessoas que a carregam diariamente, no entanto. E a pressa com que justificaram que as mais de 100 mil pessoas não são todas precárias, não é um bom sinal.
Por isso, hoje estamos aqui não apenas para contar a nossa história ou para - como dizia a Regina Guimarães, numa frase que tem tanto de bela como de cortante – “nos encontrarmos nas nossas solidões”.
Hoje estamos aqui para dizer que existimos, que temos nome e que somos precários e precárias. Estamos aqui para nos juntarmos e fazer levantar essa maré.
Para que ninguém fique para trás.
Testemunho de Jorge Paiva, lido na sessão do Bloco de Esquerda, realizada no Teatro do Bolhão no Porto, 4 de fevereiro de 2017
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