Por que é indignante o que acontece na zona euro

07 de dezembro 2011 - 22:16

A enorme crise que está a sofrer a zona euro podia ser evitada, e não o foi porque o sistema financeiro desta área monetária foi desenhado para otimizar os interesses do poder financeiro. Por Vicenç Navarro, Conselho Científico da ATTAC Espanha.

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O BCE dá prioridade ao controlo da inflação (que é o que deseja a banca) em relação ao crescimento económico (que é o que precisa a população).

O que mais indigna na enorme crise que está a sofrer a zona euro é que tudo o que está a acontecer podia ser evitado, e não foi evitado porque o sistema financeiro desta área monetária foi desenhado para otimizar os interesses do poder financeiro – e muito em especial da banca – à custa do poder da cidadania, cujo único instrumento que podia protegê-la, o Estado, foi enfraquecido para impedir que pudesse ajudar a população. Se o leitor pensa que estou enganado, aconselho-o a ler os documentos que estabeleceram o Banco Central Europeu (BCE), que estude a regulamentação deste organismo e que leia os documentos produzidos por esta instituição.

Quando foi criado o BCE, a banca alemã pôs uma série de condições para que o marco alemão fosse substituído pelo euro, condições que favoreceram os seus interesses à custa da população dos países membros da zona euro. A maioria destas condições foram aceitas. Uma delas era que o BCE, contra o que fazem os bancos centrais, não pudesse ajudar os Estados membro da zona euro comprando-lhes a sua dívida pública. É isto que faz qualquer banco central quando a divida pública do seu país está sujeita aos ataques dos mercados financeiros especulativos. O banco central imprime dinheiro e compra dívida pública do seu Estado. E com isso força a queda dos juros da dívida.

O BCE está proibido de fazer isto. Imprime dinheiro e transfere-o para os bancos, para que sejam estes a comprar a dívida pública. A estes interessa que os juros de tal dívida pública sejam elevados. E, enquanto isso, os Estados estão totalmente desprotegidos, já que não podem defender a sua dívida pública frente aos ataques especulativos. Foi o que aconteceu país a país. Não há país que tenha a sua dívida pública a salvo. Nem sequer a Alemanha, como estamos a ver estes dias. Esta maneira de construir o euro é equivalente a se nos Estados Unidos se tivesse estabelecido o dólar sem um Estado federal e sem um banco central. O dólar e a dívida pública dos Estados teriam entrado em colapso. É o que está a acontecer na zona euro. Este é o primeiro problema, que podia ter-se evitado se o BCE tivesse atuado como um banco central o que, ao contrário do que anuncia o seu nome, não é.

O segundo problema é que quando o fez, forçado pelo possível colapso da dívida pública (que teria afetado negativamente os bancos privados que possuem a dívida pública do Estado, em dificuldades), fê-lo em quantidades muito menores e a posteriori, não a priori. Quer dizer, não foi comunicado aos mercados que o BCE ajudaria e apoiaria a dívida pública (tal como faz o banco central dos EUA, o Federal Reserve Board), mas sim que comprou a dívida pública dos países em dificuldades (agora Espanha e Itália) depois, e não antes, de que os juros disparassem, causando um custo elevadíssimo ao país. Mais: fá-lo sem anunciar, e a posteriori.

Segundo as declarações de membros do conselho diretivo do BCE, esta organização comprometeu-se a comprar dívida pública, uns 20 mil milhões de euros por semana, uma quantidade menor em comparação à que seria necessária. O BCE, que é o que imprime moeda, poderia comprar quantidades muito maiores. Não o faz porque o seu objetivo maior é o objetivo da banca: que não aumente a inflação, porque se existe muita moeda a circular poderia aumentar a inflação. Mas a inflação não é neste momento um problema maior na zona euro. O maior problema é o baixo crescimento económico. Mas o BCE dá prioridade ao controlo da inflação (que é o que deseja a banca) em relação ao crescimento económico (que é o que precisa a população).

Mas a aplicação de tais medidas excecionais do BCE (a compra silenciosa da dívida pública em quantidades menores) não está a resolver a situação. Entretanto, o possível colapso da dívida pública de alguns países pode criar um colapso da banca alemã e francesa (que detêm grande parte dos bónus públicos) e indiretamente de toda a banca europeia internacional. Os bancos alemães e franceses possuem nada menos que 265 mil milhões de euros de dívida pública. Daí que a dívida pública de tais países não possa entrar em colapso. E daí também que seja um absurdo acreditar que o governo alemão tente expulsar a Grécia do euro. É a última coisa que deseja.

Como consequência, o BCE enfrenta um dilema. A sua lealdade à banca alemão fá-lo pensar que é preciso fazer alguma cosia para impedir que a Grécia, a Irlanda, Portugal, Espanha e Itália deixem de poder pagar o que devem aos bancos, um valor que chegou a níveis astronómicos. Mas, por outro lado, não quer mudar a sua norma de que o BCE não pode ajudar sistematicamente os Estados e a sua dívida pública. A solução para este dilema já estava prevista na sua constituição. No seu artigo 23, indica que o BCE pode emprestar a instituições internacionais (leia-se o Fundo Monetário Internacional, outro porta-voz da banca) o que chama de “ajuda” aos Estados de países terceiros. E é isto que está a pensar fazer. O BCE emprestará dinheiro ao FMI para que este “ajude” os Estados a pagarem aos bancos, sempre e quando estes Estados aceitarem as condições leoninas, que consistem num ataque frontal ao mundo do trabalho e à proteção social (tudo isso, em teoria, para aumentar a competitividade), ainda que na prática a sua tentativa seja de desmantelar as transferências públicas (como as pensões) e os serviços públicos (como a saúde) para privatizá-los, permitindo a entrada do capital financeiro nesses setores. O que está a ocorrer em Espanha, com a redução dos gastos sociais na saúde, na educação e nas pensões (entre outros), é a tentativa de expandir o setor privado nas pensões e na saúde. Nestes dois últimos setores, por exemplo, as seguradoras privadas, dependentes das banca, estão a beneficiar-se dos cortes realizados nestes âmbitos. Esta é a realidade ignorada nos meios de maior difusão do país.

3 de dezembro de 2011

Publicado no site da Attac Espanha.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net.