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Paul Auster e o perigoso 45.º

O escritor norte-americano esteve em Portugal, na semana passada, para apresentar o seu mais recente livro, 4 3 2 1. Porém, o tema sobre o qual mais falou foi sobre a sua “irritação” com o 45.º Presidente dos EUA: “Espero que a América sobreviva [a Trump]”.
Para o escritor nova-iorquino, Trump é um indivíduo "furioso, irracional, instável e narcisista: um perigo que se alimenta da atenção" que o mundo lhe dá. Foto de Miguel Tona, EPA/ LUSA.
Para o escritor nova-iorquino, Trump é um indivíduo "furioso, irracional, instável e narcisista: um perigo que se alimenta da atenção" que o mundo lhe dá. Foto de Miguel Tona, EPA/ LUSA.

Num encontro com jornalistas, no passado dia 10 de setembro, no âmbito do Festival Internacional de Cultura de Cascais, Paul Auster foi convidado de honra e o propósito era debater os temas suscitados pelo seu mais recente livro, 4 3 2 1, editado pela Asa, um relato a quatro tempos pontuados por múltiplos acontecimentos inesperados e que resultam em quatro versões distintas da vida do mesmo protagonista.

Porém, na entrevista conduzida pela jornalista Patrícia Reis, o escritor nova-iorquino debruçou-se muito mais sobre o panorama político do seu país, tecendo duras críticas a Trump, uma figura que classifica, segundo a Lusa, como um indivíduo "furioso, irracional, instável e narcisista: um perigo que se alimenta da atenção" que o mundo lhe dá.

Paul Auster explicou que foi necessário publicar "dois trabalhos autobiográficos", Diário de Inverno (2012) e Relatório do Interior (2013), para "pensar na [sua] infância de forma mais séria", tornando-se gradualmente "um assunto interessante que [lhe] deu o impulso" para escrever 4 3 2 1. A sua nova obra desenrola-se num movimento de causa e consequência, construindo percursos de vida distintos para a personagem de Archie Ferguson.

"Chamo-lhe 45, é o 45.º presidente [e] sempre foi um palhaço em Nova Iorque, nunca o levaram a sério".

Mas, a conjuntura histórica para qual a obra remete não se alterou significativamente: "os assuntos de que se falava há quase 50 anos ainda estão a acontecer nos Estados Unidos", afirmou Auster, na conferência. O romance que demorou três anos a ser escrito é atravessado por temas transversais ao período de 1947 a 1974, como o racismo, a xenofobia e as manifestações estudantis. A guerra do Vietname terminou, é certo, mas para o escritor trata-se do "grande cataclismo da vida [de Auster] e, provavelmente, o maior trauma na história norte-americana", e é algo que transmite a "posição precária" em que o país ainda se encontra. Assim, logo no inicio, chegamos a Trump.

Auster considera que o seu país está em piores condições do que no passado e, segundo o relato dos jornalistas, recusa referir-se ao atual presidente dos EUA, Donald Trump, pelo seu nome: "Chamo-lhe 45, é o 45.º presidente [e] sempre foi um palhaço em Nova Iorque, nunca o levaram a sério", reforçando que Trump demonstra ignorância "acerca que o a América representa".

O escritor receia que os apoiantes do presidente estejam a "destruir o país pouco a pouco". Segundo o DN, a sua resposta mais longa, em toda a entrevista coletiva, aconteceu quando se embrenhou nas questões sobre o poder judiciário norte-americano, criticando a deriva à direita e recorrendo a exemplos como se estivesse a reescrever este seu último e longo romance. No fim, acabou por deixar o lamento: "Espero que a América sobreviva [a Trump]".

O escritor clarifica que a sua única razão de alívio reside no "novo ativismo em Nova Iorque, não dos democratas, que parecem estar muito confusos e em desordem", mas com base em "protestos liderados, maioritariamente, por mulheres", cita ainda o DN. Nas suas respostas, Auster disse ainda que não conhece ninguém que tenha votado em Trump, defendeu Bernie Sanders (o candidato que perdeu as primárias democratas para Hillary Clinton) e recordou medidas de Barack Obama. Tudo isto foi comentado sem aceitar qualquer existência de autobiografia no romance 4 3 2 1, cujas 800 páginas contêm inúmeras referências da histórica política dos EUA, como o Vietname, o Caso Rosenberg ou o mandato presidencial de Nixon.

Nunca os “bons” jornalistas foram tão necessários

No final da entrevista, conta o DN, perguntaram a Paul Auster porque está mais amargo desta vez e, perante o ar espantado do escritor negando a avaliação, um jornalista arriscou outra palavra: “Está mais irritado?” O escritor acabou por responder prontamente: "Estou muito irritado, mesmo muito com tudo isto que está a acontecer". Neste "tudo" estão Trump, o populismo e a violência que marcam a América e o mundo nos dias de hoje, bem como nos últimos anos (temas que têm alimentado os seus anteriores romances, como foi o caso da governação de George W. Bush, o sistema de saúde norte-americano, a falta de literacia do americano médio, entre outros).

O autor afirmou que Trump "está apenas no início" e que cabe "aos jornalistas apurarem a verdade de tudo o que se passa agora", partindo do princípio que o "bom jornalismo" é o "trabalho mais importante para o bem-estar do mundo". Na verdade, considerou, esta profissão está "sob ataque", colocando em risco "a fé das pessoas na verdade". Mas nunca os jornalistas foram tão necessários, alegou. Auster receia que Trump continue "a persuadir as pessoas de que as mentiras [que conta sejam] verdade", já que o 45.º utiliza "as mesmas táticas que os Nazis, nos anos 1930 e 1940", tornando-se "uma pessoa perigosa para governar o país mais poderoso do mundo", cita o mesmo jornal. Não sabemos se é por acaso, mas numa das vidas do seu último protagonista, Archie Ferguson, este toma a decisão de enveredar pelo universo jornalístico.

Qualquer situação pode acontecer a qualquer pessoa, a qualquer momento

Quanto ao processo de escrita, Paul Auster falou na importância "da música das palavras, das frases e da forma como um parágrafo transita para outros", transformando-se "em substância" que integra o produto final.

O seu novo romance, 4 3 2 1, inclui várias notas autobiográficas, das quais Auster destacou a história de como, aos 14 anos, viu um rapaz a ser atingido por um relâmpago mesmo perto de si, algo que mudou a sua vida e o fez perceber "que qualquer situação pode acontecer a qualquer pessoa, a qualquer momento", formando o "epicentro do novo romance". O livro procura responder à pergunta "E se...?", delineando quatro caminhos distintos para um mesmo personagem, Archie Ferguson.

"Em inglês há o termo 'nature nurture', que surge [da combinação] do ser natural e genético, com a maneira como se é educado ou o ambiente em que se cresce", realidades que "estão interligadas e são impossíveis de separar", disse. Mas, "a frequência com que algo inesperado acontece" é o dilema "que sempre o preocupou", explicou, segundo cita a Lusa. Na opinião de Auster, o princípio de que diferentes circunstâncias conduzem, necessariamente, a pessoas de personalidades distintas, revela a importância de "dar espaço ao inesperado para viver a vida com algum tipo de coerência". Como tal, "os mecanismos da realidade" diferem das crenças "no destino, na fé e na intervenção divina", considerou ainda.

O estranho faz parte da normalidade

Ao escrever 4 3 2 1, nomeado como candidato ao prémio Booker deste ano, Auster quer provar que "o estranho faz parte da normalidade" e que, no papel de arquiteto das suas narrativas, este "não manipula as personagens", optando por "lhes dar vida" para depois "as seguir, sem as guiar" a um caminho concreto.

No decorrer da conversa, este frisou que não escolheu tornar-se um escritor: "Não se trata de uma opção. (...) Ser um artista de qualquer tipo é como apanhar uma doença da qual nunca se recupera. [Ser escritor] é uma obrigação".

Para Paul Auster, "o papel [social] da escrita mantém-se o mesmo, desde há 500 anos", algo que se complementa com o processo de leitura, "uma experiência muito íntima" que se faz individualmente. Posteriormente, ressalva que ler histórias "é uma forma excelente de confrontar medos ou ansiedades em relação ao mundo, de modo seguro".

Depois de ter afirmado num festival, em Espanha, que esta seria a sua última obra, o escritor sossegou quem se deslocou à Casa das Histórias Paula Rego, ao confessar que já tem outro projeto em mente, que não é um romance, mas uma obra de não-ficção. Contudo, acrescentou, sente "mais histórias a formarem-se na [sua] cabeça".

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