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Para uma política cultural pós-humanista (1)

A pretensão de uma filosofia pós-humanista progressista não passa obviamente por recusar as conquistas universais dos direitos humanos; mas antes, por contrapor-se ao (neo)liberalismo político, à hegemonia do falocentrismo e do patriarcado, à heteronormatividade e ao darwinismo social como formas disciplinares da modernidade.
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Se é verdade que somos aprisionados pela linguagem,
então, a fuga dessa prisão exige poetas da linguagem,
exige um tipo de enzima cultural que seja capaz de interromper o código;
a heteroglossia ciborguiana é uma das formas de política cultural radical.

Donna Haraway

A noção de “humano” vem sendo desde os anos 1950, e mais especificamente após o desenvolvimento da cibernética, desestabilizada pela emergência das biotecnologias e pelos novas tecnologias da informação e comunicação. A ideia de um humanismo vinculado à tradição europeia do Iluminismo pós-renascentista foi, como se sabe, um factor de condicionamento histórico da alteridade, e estabeleceu uma visão antropocêntrica do mundo - do homem como medida de todas as coisas - e disseminou o racionalismo fundamentalista que ainda hoje vigora na economia, com as consequências conhecidas no que respeita à dominação da natureza – o antropoceno é hoje uma problemática e debate urgente em torno das alterações climáticas.

Por outro lado, e apesar da sua quase invisibilidade social, é preciso ter em consideração que o ser humano tal como o conhecíamos é hoje uma memória antropológica sobre três aspectos cruciais da vida humana: a genética, a comunicação e o cérebro. O biopoder da biotecnologia possibilita doravante enxertar código na carne e criar vida sintética; o ciberpoder da cibernética permite inserir vírus na linguagem e disseminar gramáticas de controlo e o neuropoder da neurociência permite induzir consciências artificiais.

Estes poderes estão hoje inseridos na trama das redes telemáticas, e funcionam nas extensões técnicas como próteses traumáticas do corpo e da mente (M. McLuhan). Ou, como afirma D. Haraway, «no final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política» (Manifesto Ciborgue).

A pretensão de uma filosofia pós-humanista progressista, ancorada p.ex. em Donna Haraway e no seu Manifesto Cyborg, não passa obviamente por recusar as conquistas universais dos direitos humanos; mas antes, por contrapor-se ao (neo)liberalismo político, à hegemonia do falocentrismo e do patriarcado, à heteronormatividade e ao darwinismo social como formas disciplinares da modernidade.

Contrariando os dualismos instaurados pela tradição ocidental - «a tradição do capitalismo racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro» (idem) -, o pós-humanismo sustenta-se no pensamento nomádico e na inteligência crítica não-reactiva, num combate contra a diluição de categorias antagónicas, tais como natureza/cultura, ser humano/máquina, homem/mulher, humanos/animais. Neste aspecto é pertinente observar que as investigações posteriores de Haraway, após o interesse no ciborgue, se centram precisamente na ligação entre humanos e animais de companhia.

No contexto das artes contemporâneas, o trabalho de Erik van Lieshout com/para os gatos do Museu Hermitage é revelador desta linha de alargamento e inclusão pós-humana.

Portanto, não confundamos a crítica pós-humanista com um anti-humanismo primário, nem com o fetichismo da expansão tecnológica high-tech do corpo e da mente, como é sugerido em muitos filmes e obras de ficção científica, onde o ciborgue é apenas visto como resultante do determinismo tecnológico. Isto não quer dizer que, em certo sentido, a realidade da tecnociência contemporânea não seja mais radical do que a própria ficção, basta estar atento às inovações do complexo industrial-militar ou da bioengenharia genética.

As dinâmicas políticas e sociais, e os fluxos de desterritorialização gerados pelo capital financeiro, formam hoje um campo de batalha intenso, onde a financeirização total do capital marca o fim da velha burguesia e abre a porta à proliferação rizomática das relações de poder económico. Fredric Jameson, em Culture and Finance Capital, descreve o estádio especulativo da expansão financeira como uma espécie de vírus desenvolvendo-se numa epidemia lançada pela máquina capitalista.

É cada vez mais evidente a dissonância cognitiva entre a esfera das práticas culturais (dos projectos, das condições e necessidades dos agentes) contemporâneas e a das políticas de cultura, especialmente das que se exercem à escala urbana. Mas, independentemente do mapeamento do potencial das possibilidades transformadoras, há quem diga que vive já noutro mundo, como se o seu corpo (real) estivesse doravante aprisionado pelas regras da austeridade e da hegemonia neoliberal, e só através do seu avatar digital conseguisse aspirar a viver num mundo mais próximo dos seus ideais.  A liberdade actual só existe na realidade virtual?

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
Termos relacionados Cultura
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