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Óscar Lopes, um brilho tão intenso quanto a sua simplicidade

Republicamos o texto que João Semedo escreveu sobre Óscar Lopes, nos cem anos do seu nascimento e em que destaca: “um depoimento sobre Óscar Lopes é um encargo difícil. A sua dimensão humana, intelectual e política não cabe nos limites de qualquer escrito”.
Óscar Lopes foi comunista e militante até à sua morte em 2013. “A disciplina que assumia como regra, não condicionava nem a sua independência de pensamento nem a afirmação das suas ideias, mesmo quando divergentes das da direção”.
Óscar Lopes foi comunista e militante até à sua morte em 2013. “A disciplina que assumia como regra, não condicionava nem a sua independência de pensamento nem a afirmação das suas ideias, mesmo quando divergentes das da direção”.

Um depoimento sobre Óscar Lopes é um encargo difícil. A sua dimensão humana, intelectual e política não cabe nos limites de qualquer escrito. Ainda assim, tentarei recordar algumas memórias de uma relação de muitos anos, que possam contribuir para um desenho da sua personalidade que outros completarão e ajudarão a construir.

Conheci pessoalmente Óscar Lopes em 1978, ano em que vim viver para o Porto. Fui seu camarada de partido desde essa data, ambos militantes e organizados no setor intelectual do Porto do PCP e, mais tarde, ambos membros do comité central.

E fui seu médico pessoal durante vinte anos, desde a década de 80 até 2000, ano em que a exclusividade das funções de diretor hospitalar me impediu de continuar a acompanhá-lo como médico. Pormenorizo estas datas apenas para que fique claro que a minha divergência com o PCP em 1991 - ano em que me demiti do comité central - em nada beliscou a minha relação com Óscar Lopes, o que é bem revelador do seu carácter e de um espírito aberto à dúvida, à diferença e à discordância.

Acho que posso dizer que conheci muito bem Óscar Lopes – em certa medida fruto da relação privilegiada médico-doente - sendo certo que, como qualquer ser humano, Óscar Lopes mantinha para si alguns compartimentos de reserva absoluta que nem mesmo o contexto íntimo daquela particular relação permitia penetrar.

As consultas eram sempre em sua casa. O Óscar Lopes estava invariavelmente sentado no seu cadeirão, rodeado por pilhas de livros que motivavam o seu permanente lamento de estar sempre atrasado no cumprimento das datas dos múltiplos compromissos que aceitava. Nunca o encontrei em dia com alguma deadline, sobretudo quando se tratava de atualizações da sua História da Literatura Portuguesa. Mas, Óscar Lopes podia falhar um prazo, mas nunca falhava um compromisso.

Óscar Lopes era franzino, tinha uma aparência que transmitia uma impressão de grande fragilidade e vulnerabilidade físicas. Mas não, Óscar Lopes era saudável e resistente. Na verdade, o seu grande problema foi a surdez progressiva que o atingiu e à qual ele reagiu muito mal, fechando-se em casa e isolando-se cada vez mais, apesar de manter uma elevada capacidade de trabalho que não o impedia de prestar uma grande atenção ao que se passava no país e no mundo. Testemunhei isso tantas e tantas vezes, em abono da verdade, em todas as consultas que tivemos.

Consultas que tinham muito pouco de clínica e muito de política, de história, de literatura, de música, de linguística, enfim de tudo o que compunha os múltiplos centros de interesse de Óscar Lopes e com quem aprendi muito devido à sua infinita paciência e capacidade para traduzir conhecimentos complexos em ideias simples, à altura da compreensão de qualquer leigo naquelas matérias: as relações da matemática com a língua que falamos e escrevemos, o contributo de Fernão Lopes, Gil Vicente ou Pessoa na construção dinâmica da nossa língua, as razões da sua preferência por este ou aquele autor – assunto em que era bastante reservado e cauteloso mas não o suficiente para não deixar perceber as suas inclinações - o sentido de algumas peças musicais de grandes compositores e como isso se relacionava com a respetiva época histórica e social, e muitas outras problemáticas porque, para Óscar Lopes, o pensamento científico não tinha muros a dividi-lo.

Que comunista era Óscar Lopes? A pergunta faz todo o sentido porque são conhecidas várias opiniões a esse respeito e muitas altamente contraditórias. Era um intelectual orgânico à moda de Gramsci? Era um comunista ortodoxo? Ou teria as suas heterodoxias? Estava permanentemente à beira da rotura, da dissidência, como muitos receavam e anteviam ou, ao contrário, deixar o PCP nunca foi a sua perspetiva ? Nenhum destes rótulos, destas etiquetas, se aplica a Óscar Lopes.

Óscar Lopes era um comunista convicto, convicção alicerçada no seu pensamento marxista e num apurado sentido de justiça e ética social que o fazia estar sempre ao lado dos oprimidos e dos mais frágeis da sociedade, contra todas as desigualdades, dois pilares fundamentais da sua longa e inquestionável militância comunista.

Óscar Lopes foi um comunista muito especial. Tinha um sentido muito apurado da disciplina partidária e de nada fazer que pudesse ajudar à campanha dos inimigos do PCP, sem que isso resultasse da sua adesão ao leninismo e aos princípios e regras de organização dos partidos comunistas, incluindo o PCP, sobre o qual tinha uma opinião crítica. Esta postura nunca o impediu, no entanto, de fazer ouvir a sua opinião contrária a posições defendidas pela direção do partido ou por alguns dos seus principais dirigentes.

Óscar Lopes, comunista disciplinado, era o oposto do dogmatismo, do maniqueísmo, do esquematismo, do seguidismo e do autismo que muitos intelectuais criticavam no PCP. E, sendo assim, foi comunista e militante até à sua morte em 2013. A razão é simples: a disciplina que assumia como regra, não condicionava nem a sua independência de pensamento nem a afirmação das suas ideias, mesmo quando divergentes das da direção.

Recordo as polémicas entre a intelectualidade comunista nos finais da década de 30 e na década de 40 - que o tempo veio a “amaciar” - muito polarizadas na problemática do papel social da arte, da cultura e dos intelectuais e na relação da forma e do conteúdo na literatura, na pintura e na arte de uma forma geral.

Nessa controvérsia acesa entre Álvaro Cunhal – acérrimo defensor do neo-realismo como modelo estético - e muitos intelectuais comunistas ou próximos do partido que não subscreviam por inteiro essa visão (Régio, Lopes Graça, Cochofel, Mário Dionísio, Piteira Santos, entre outros), Óscar Lopes tomou partido e não deixou de afirmar a sua posição crítica das ideias de Cunhal, embora nunca atingindo o grau de conflitualidade a que outros chegaram e que conduziram à saída do partido de muitos deles, nalguns casos para sempre.

Mais tarde, a partir dos anos 80, quando o sonho de um Portugal socialista se desfazia pela intensa e violenta contrarrevolução que procurava eliminar uma a uma todas as transformações do 25 de Abril, havia entre os intelectuais do partido uma controvérsia sobre o seu papel enquanto comunistas. Essa disputa radicava numa certa saturação de uma militância que se resumia no essencial a uma atividade de apoio à luta dos trabalhadores e democratas em defesa das conquistas de Abril e ao trabalho militante em torno da situação sócio-profissional que procurava responder à sua “proletarização”, relegando para um segundo plano – na realidade praticamente inexistente no partido – a sua intervenção no domínio da produção ideológica.

Por essa altura, o trabalho ideológico do PCP não ia mais longe que a propaganda, a produção de informação e comunicação, em articulação com as necessidades da luta política. Para o partido, o trabalho ideológico não constituía uma frente autónoma e desligada dos principais conflitos da conjuntura política, tese sustentada pela direção comunista. Óscar Lopes – e muito outros, entre os quais é justo destacar Armando Castro – foi das primeiras vozes a fazer-se ouvir em defesa de uma mudança no rumo e nas prioridades do trabalho militante dos intelectuais comunistas. Este debate, esteve no centro da primeira assembleia dos intelectuais comunistas do Porto, realizada em 1987, em cujas linhas e entrelinhas se encontram as duas posições em confronto. Óscar Lopes não desperdiçou a oportunidade para insistir na urgência de uma maior atenção e participação na frente ideológica. Julgo que, mais uma vez, se impôs o tradicional ecletismo com que o PCP habitualmente fechava as polémicas mais difíceis.

Consequência ou não desta discussão, o certo é que em 1988 é relançada a revista Vértice, fundada em 1942 e que, mais tarde, teve a sua publicação interrompida. A Vértice foi uma publicação que marcou de forma ímpar a vida cultural portuguesa no tempo da ditadura, um instrumento de luta contra o fascismo e, também, espaço e expressão das controvérsias e conflitos que, naqueles anos 40, dividiram os intelectuais comunistas e a que já me referi. Confirmando o seu empenho no debate ideológico e a valorização que dele fazia, Óscar Lopes participou ativamente tanto no nascimento (1942) como no renascimento da revista (1988).

Termino, com o que mais me sensibilizou na personalidade de Óscar Lopes e que, precisamente por isso, escolhi para título deste depoimento: não conheci nem conheço outra pessoa cujo brilhantismo só tenha paralelo na sua simplicidade - se quiserem, chamem-lhe modéstia ou humildade. Quando penso em Óscar Lopes, é essa a primeira imagem que vejo dele, brilho e simplicidade.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 6 de outubro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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