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“O centro perdeu estas eleições, o centro deu-nos Trump”

Entrevista a Bhaskar Sunkara, fundador e editor da revista Jacobin. Por Miguel Bordalo e Joana Louçã.
Bhaskar Sunkara

Esta entrevista faz parte do nono episódio do programa Mais Esquerda, que pode ser visto aqui. A entrevista pode ser lida e vista na íntgra em baixo.

Num artigo recente publicado na revista Jacobin co-assinado por ti, pode ler-se que: 

“uma resposta a Trump que começa e termina em horror não é uma resposta política - é uma forma de parálise, uma política de se esconder debaixo da cama. E uma resposta ao fanatismo americano que começa e termina com a denúncia moral não é política de todo - é o oposto da política. É rendição.” 

Qual deve ser a resposta a Trump?

Em primeiro lugar, acho que pelo reconhecimento que não houve uma grande deslocação de votos à direita no último ano nos Estados Unidos. A maior parte dos eleitores potenciais não votaram nesta eleição, e em segundo lugar muitos dos eleitores votaram em Hillary Clinton, mais dois milhões do que os que votaram em Donald Trump, e muitos votaram em Donald Trump.

A verdadeira pergunta é: vais acreditar na narrativa liberal do centro que 46% das pessoas nos Estados Unidos são supremacistas brancos, ou fascistas, ou vais interpretar a combinação de pessoas que votaram em Clinton, em Trump em protesto, ou que não votaram de todo porque não estão confortáveis com as suas opções políticas e procuram uma alternativa, qualquer alternativa? 

Naturalmente que eu, como socialista, não acho que o populismo de direita seja uma alternativa, mas acho que há um estado de espírito neste país que é melhor captado pela deslocação do eleitorado à esquerda e por abraçarem uma política de classes real. Isso foi representado na campanha do Bernie Sanders e obviamente há limites e contradições para esse populismo nos Estados Unidos, mas acho que essa é uma conjuntura com a qual os socialistas realmente precisam de se relacionar. 

Muita gente disse depois da eleição “meu deus, vou-me mudar para o Canadá”, mas muitos liberais estão desconectados da forma como a classe trabalhadora média se sente e por que razão pessoas que não são racistas, que não são sexistas quereriam votar em algo novo e diferente. Algo que todos os principais segmentos do capital não queriam que fizessem, algo que todos os principais média não queriam que fizessem.

Na sequência da eleição presidencial, mais do que atribuir culpas, achas que os liberais e o Partido Democrata estão a tentar perceber o que aconteceu e por que razão aconteceu?

Em parte sim, não digo que não estejam. Mas fundamentalmente, as suas políticas estão contra realmente encontrar um solução para isto. Não é por acaso que a política liberal tenha caído nisto. A política liberal, por definição, baseia-se num projeto tecnocrático que isolou e devastou grandes porções do país.

É a mesma conversa de sempre em economia neoliberal, eles não queriam chegar a essas pessoas, eles acharam que a sua combinação de uma política centrista e a retórica da inclusão social seria uma combinação ganhadora. Por outras palavras, os democratas pensaram que iriam comandar a maioria, avançando com uma coligação das classes empresariais, de novos segmentos de capital e forças destas, além do voto em bloco de minorias, especialmente os votantes negros, que não tinham outra alternativa, mais ninguém em quem votar.

O apelo de Clinton era puramente baseado no medo, tal como o Brexit. A grande palavra de ordem com que acabou a campanha (que até era bastante inteligente), o “Amor Vence Ódio” [um trocadilho em inglês com o nome de Donald Trump “Love Trumps Hate”], que mensagem final é essa? É puramente reativo, é puramente defensivo. As pessoas querem saber de coisas positivas que o governo ou a administração lhes vá fazer, mais do que este apelo constante para simplesmente votar contra alguma coisa. Acho que os eleitores se revoltaram contra isso.

Trump anunciou medidas para os seus primeiros cem dias enquanto Presidente, quais irão ter um maior impacto nas vidas das pessoas e o que irá acontecer depois disso?

O que Trump está a fazer é tentar arranjar e construir uma coligação consiga suster as suas medidas de direita populista. Se o conseguisse fazer, conseguiria publicar um grande programa de empregos, uma lei de infraestruturas com substância e potencialmente criaria uma grande base para o seu populismo de direita, ganhando 30 a 35% do voto negro. O suficiente para nos círculos eleitorais construir uma maioria, porque neste momento a sua maioria, a sua polaridade nem é uma polaridade, é mais fraca do que o que os Clinton fizeram.

Felizmente para nós, acho que vai ser amparado na sua tentativa pelo facto de o Partido Republicano, particularmente no Congresso, não querer o tipo de medidas populistas que Trump quer. Eles querem políticas centradas em algo diferente, nas tradicionais políticas a favor dos negócios. Acho que muitos dos seus planos vão ser deitados abaixo, não vai conseguir fazer grande coisa através de ações executivas. 

O que vai fazer que terá um impacto nas vidas dos trabalhadores imediatamente são as suas nomeações para o Supremo Tribunal, porque há algumas decisões importantes pendentes que irão determinar o destino de muitos sindicatos da função pública, além de, obviamente, direitos reprodutivos, etc. Penso que as nomeações para o Supremo Tribunal serão importantes, muitas das outras funções do Estado nas quais as pessoas não pensam são coisas como National Labor Relations Board [Conselho Nacional de Relações Laborais], que dita as relações entre os empregadores e o trabalho nos Estados Unidos. Este Conselho, apesar de todas s falhas de Obama, tem sido populado por pessoas à esquerda do centro, por isso muitas das decisões de mandatos recentes que foram a favor do trabalho serão revertidas e vamos ter um novo regime. Pequenas coisas como estas terão um impacto nas vidas das pessoas.

Uma coisa a ter em conta na histeria das deportações é que claro que Trump vai ser muito mau nisto, mas Obama já deportou dois milhões de pessoas. Acho que muitas coisas se vão passar como de costume, mas ligeiramente pior, acho que não vai haver nenhuma quebra dramática em nenhuma direção. Acho que o perigo, o que me deixa acordado à noite, é que, se deixado atuar, Trump poderia ser um presidente bastante eficaz, poderia ser um líder decente que conseguiria criar algum estímulo, algum programa de emprego, coisas como essas que poderiam conquistar uma parte importante da população. É isso que me preocupa, que ele seja um presidente popular e, juntando-lhe elementos populistas, isso crie uma coligação vencedora.

Por causa da retórica que se está a fazer agora de que ele vai ser muito mau, se ele for ligeiramente menos mau que a expetativa, será bom para ele, porque irá contra essa expetativa...

Exato, e há tanta histeria, se ouvisses algumas das pessoas dos média liberais, mas também a linguagem de pessoas da esquerda, pensarias que já temos fascismo nos Estados Unidos. Não quero menosprezar a ameaça de populismo de direita, mas vou dizê-lo desta forma, a ameaça é a longo prazo que esta força política se possa desenvolver e crescer e que algumas políticas imediatas más sejam aprovadas. Mas se agirmos como se o fascismo fosse chegar a 20 de janeiro, estaremos a seguir políticas de curto prazo.

Muitas destas mobilizações imediatas contra Trump não têm uma infraestrutura duradoura e são apenas expressões a curto prazo, em muitos casos até podem ser politicamente contra producentes. Não estou a dizer para deixarmos Trump em paz, mas para pensarmos em como nos podemos organizar seriamente. Não acontece em todos os contextos políticos, mas muitas vezes o que parece a coisa mais radical para fazer é na verdade uma ação de curto prazo e realmente o que é preciso é criar estruturas reais e organizações e redes num nível mais profundo. Em muitos locais, não deveríamos estar necessariamente já nas ruas a protestar contra Trump, parcialmente porque ele ainda não está no poder. Talvez haja outras coisas que possamos ir fazendo ao longo dos próximos dois meses.

Além disso, acho que o nosso principal inimigo, especialmente nos próximos dois meses, mas também depois é o centro. Se o velho establishment do DNC [Democratic National Committee, o Comité Nacional Democrata, a direção do Partido Democrada] pessoas como Hillary Clinton ou Barack Obama continuam a mandar, então a única alternativa viável para as pessoas era ou “Clintonismo”, ou “Trumpismo", e estaríamos numa situação como em França, em que talvez o “Trumpismo" não conseguirá ganhar novas eleições, mas será uma força tão dominante que vai distorcer todo o terreno político nessa direção populista.

Este é o momento em que precisamos de dizer que o centro perdeu estas eleições, o centro deu-nos Trump, que vai continuar muitas destas políticas criadas e concebidas no centro e torná-las ainda piores. Temos de realmente estabelecer, pela primeira vez nas últimas décadas dos Estados Unidos, uma esquerda. Acho mesmo que especialmente ao longo dos próximos dois meses o principal inimigo é o centro.

As pessoas esquecem-se que Obama apoiou o regime das deportações e também que a maioria das grandes cidades no país tem Presidentes da Câmara democratas. A violência do Estado é de polícias locais dirigidas por Presidentes de Câmara e Assembleias Municipais democratas. A ideia de que agora está tudo bem, mas que algo mesmo mau vai tomar o poder e esmagar o centro, pode lançar-nos para um movimento do tipo “qualquer pessoa menos Trump”, que vai acabar por nos trazer um candidato centrista. Temos de olhar atentamente para o exemplo do que aconteceu em Itália, com a resistência ao Berlusconi e como isso se virou contra a esquerda; temos de manter uma esquerda independente.

Trump anunciou que convidou conservadores de extrema direita, racistas e demagógicos para o governo e agências governamentais...

Acho que isso é o que realmente podemos protestar, a nomeação particular de determinadas pessoas como Steve Bannon e outros. Esta direita tão extrema sempre existiu nos Estados Unidos, o Partido Republicano está à direita de uma partido de centro direita normal, mas por causa da história deste país, do sistema bipartidário, não costumamos ter uma direita tão visível e explícita e é invulgar ver figuras como estas a ser catapultadas. Que consequências trarão? Não tenho a certeza, não consigo dizer, acho que muitas vezes este fenómeno de direita alternativa é exagerado na sua coerência e força, de várias formas é muito efémero e muito concentrado em pequenas porções dos média e das redes sociais.

Acho que o perigo real é outro, o de Trump realmente governar com um programa sério e conquistar mais pessoas e cimentar uma agenda populista de direita. Acho que, em muitas formas, poderemos ser ajudados pelo facto de Paul Ryan, e de os democratas no Congresso também não quererem isso. Mas seja qual for o compromisso a que essas duas partes vão chegar, os apoiantes de Paul Ryan e de Trump, não será bom para os trabalhadores.

Hilary Clinton teve mais dois milhões de votos que Donald Trump, que mudanças no sistema eleitoral nota americano são necessárias para impedir esta situação de se repetir mais uma vez?

Claro, de muitas formas acho que temos um sistema que é bizarro e arcaico, o sistema dos colégios eleitorais, muitas destas coisas foram construídas nas fundações de compromisso na sociedade esclavagista, não são bons sistemas. Mas acho muito bizarro que os liberais estejam a chorar por causa das regras do jogo em geral, mas não questionem a Constituição, a estrutura do governo quando estão a mandar. 

Perdem a corrida e dizem que o voto popular é que deveria contar, não os colégios eleitorais. As regras desta eleição no início era quem os colégios eleitorais é que contam. Ignoraram Estados como o Michigan ou o Wisconsin, porque pensavam que venceriam facilmente, a culpa é deles. Vamos ter todos de pagar das consequências do seu erro, mas acho o timing muitos suspeito. Mas claro, estão-me a perguntar enquanto socialista e a minha resposta é que todas estas estruturas precisam de mudar, eu quero esmagar e substituir todo o estado burguês, etc. Mas neste momento, acho que muitas das lamúrias liberais sobre os colégios eleitorais muito dúbias.

Em mau timing.

Sim. É verdade que os democratas têm uma grande vantagem a nível do voto popular nacional, ganharam 6 das últimas 7 eleições em voto popular e perderam duas dessas eleições que ganharam em voto popular. Eles têm um grande interesse em mudar o sistema, mas a Constituição norte americana está desenhada para ser muito difícil de mudar. Há algumas formas em que seria possível erodir os colégios eleitorais sem uma emenda constitucional. Mas o sistema está desenhado para isolar os governos de pressões populares, da multidão. É isso que os nossos fundadores tentaram fazer, e fizeram um óptimo trabalho em criar uma república estável para as elites que, na generalidade, tem sido estável ao longo da sua história, mas claro que queremos outra coisa. 

Penso que os liberais se estão a focar tanto na questão institucional, no Supremo Tribunal, nos colégios eleitorais, em todas estas dinâmicas parcialmente porque não têm uma visão de política de massas e penso que a esquerda se deveria afastar, neste momento, desses debates e concentrar-se numa visão da política mais profunda e totalmente diferente. Uma política que organize toda a gente, todos os trabalhadores, de todas as classes.

Os Estados Unidos ainda são um país muito branco e a maioria da classe trabalhadora é branca e se tens este tipo de política capitalista identitária de pensar que uma certa percentagem de votantes de Trump não podem ser conquistados, penso que estás enganado. A base eleitoral de Trump foi essencialmente uma base de pequenos proprietários, pequeno burgueses, mas mais de 30% são trabalhadores que acho que poderiam ser conquistados por alguma plataforma redistributiva de esquerda.

 

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Sobre o/a autor(a)

Doutorada em sociologia da infância
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