Nicarágua: Da revolução bonita à ditadura sangrenta

15 de dezembro 2018 - 14:55

Na madrugada desta sexta-feira a polícia assaltou várias sedes de ONG’s na Nicarágua. Neste texto, Matthias Schindler denuncia o regime nicaraguense e destaca: “um governo que reprime, tortura e mata o seu povo não é um governo de esquerda”.

porMatthias Schindler

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Na madrugada de 13 para 14 de dezembro, as sedes de várias ONG’s foram assaltadas pela guarda do regime de Daniel Ortega – Foto da sede da revista Confidencial
Na madrugada de 13 para 14 de dezembro, as sedes de várias ONG’s foram assaltadas pela guarda do regime de Daniel Ortega – Foto da sede da revista Confidencial

O que tem que ver Nicarágua com o ecossocialismo? Nada! Absolutamente nada!!!

Mas temos que falar sobre Nicarágua neste Encontro* porque a experiência nicaraguense tem repercussões extremamente importantes para a conceção duma alternativa ecossocialista ao capitalismo neoliberal!

Isto quero ilustrar pelos cinco pontos seguintes:

1. A situação atual de Nicarágua

A partir do dia 18 do abril deste ano desenvolveu-se na Nicarágua uma onda de protestos pacíficos de estudantes universitários que em poucos dias abrangeu toda a sociedade do país. Os protestos começaram em defesa dum reservado natural e contra uma reforma social, mas dirigiram-se depois cada vez mais diretamente contra o governo do Presidente Daniel Ortega e a sua mulher, a Vice-Presidente Rosario Murillo. O governo, que pretende ser um governo "socialista, cristão e solidário", respondeu com uma repressão incrivelmente brutal que provocou até agora mais de 400 mortos, milhares de feridos e mais de 40 mil pessoas que buscaram proteção no país vizinho Costa Rica. Nesta repressão participam muitas pessoas civis, mascaradas, com armas de guerra e em aberta colaboração com a polícia.

Neste momento há mais de 500 presos políticos e pessoas desaparecidas. Os detidos são vítimas de humilhações, violações e torturas. Juízes fiéis ao casal presidencial condenam os réus a 15, 20 ou mais anos de prisão. Mas não há nenhum processo contra algum paramilitar. Médicos e enfermeiros, que assistiram os protestantes feridos, foram despedidos dos seus trabalhos. Também despediram professores da escola ou da universidade que se tinham solidarizado com os manifestantes.

Atualmente por trás de uma imagem supostamente "normal" nas ruas do país, está uma sociedade traumatizada por esta orgia de violência e repressão estatal. Manifestações já quase não são possíveis. Por isto o protesto manifesta-se por exemplo nas ruas completamente vazias porque ninguém sai de casa. Ou as pessoas põem balões azuis e brancos nas ruas. Mas mesmo mostrar publicamente as cores nacionais é uma atividade perseguida pela polícia porque se percebe – com razão – como forma de protesto contra o regime de Ortega.

2. A situação económica e ecológica de Nicarágua

Embora o presidente Ortega pretenda seguir uma linha política "socialista", cumpre de maneira exemplar com as orientações neoliberais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. A sua orientação económica geralmente segue o modelo extrativista, o que significa que se exportam as riquezas do país – por exemplo, ouro, óleo de palma, carne ou café – sem produzir valor acrescentado para industrializar o país.

Dois exemplos para esta política extrativista são:

Primeiro, o projeto da construção de um canal interoceânico do ano 2013: [Agora este projeto desapareceu da agenda nacional, mas pode reaparecer em qualquer momento]. Esta construção deveria mover a maior quantidade de terra na história da humanidade, e causaria danos naturais irreparáveis. [Não existe nenhum estudo sério de factibilidade económica nem ecológica.] O projeto provocou um movimento massivo de camponeses da região afetada contra o canal porque a sua realização significaria um desastre político, jurídico, social e ecológico para toda a Nicarágua.

O segundo exemplo é o projeto mineiro de Rancho Grande. Já no ano 2000 os moradores desta região fundaram um movimento de base – amplo e pacífico – contra a exploração do ouro a céu aberto. Para produzir uma tonelada de ouro precisa-se de 150 toneladas de cianeto, uma substância que é mortal para as pessoas já numa dose de poucos mililitros. Para ganhar só 5 gramas de ouro tem que se escavar uma tonelada de terra. E depois da exploração do ouro fica uma paisagem lunar com terras e águas altamente contaminadas. Depois de 15 anos de mobilizações contra diferentes governos e companhias mineiras estrangeiras, o movimento ganhou esta batalha e o governo declarou o projeto como não viável.

3. Antecedentes da situação atual

Para perceber a situação atual de Nicarágua é preciso analisar os desenvolvimentos políticos dos anos passados. Os últimos 11 anos de governação do presidente Ortega tinham duas caras. Por um lado, houve um certo crescimento económico e melhoramentos da vida especialmente para os mais pobres. Por outro lado, Ortega enriqueceu para se tornar num multimilionário, conseguindo também concentrar nas suas mãos o controlo sobre todas as instituições do Estado: o Supremo Tribunal de Justiça, o Conselho Supremo Eleitoral, a Procuradoria Geral, o Governo, a Assembleia, a Polícia e o Exército.

Para chegar a esta posição omnipotente manipulou eleições, violou a Constituição, reprimiu partidos políticos, destituiu deputados e reprimiu movimentos opositores. Mas para se poder explicar, por que razão um ex-dirigente revolucionário se pode converter num novo ditador, temos que admitir que a mesma Revolução Sandinista teve estruturas democráticas fracas, tanto na prática política como também no seu fundamento teórico.

4. As caraterísticas da Revolução Sandinista

A Revolução Sandinista de 1979 erigiu um regime com pluralismo político, com numerosos partidos políticos, eleições democráticas, organizações sindicais no campo e nas cidades. Existia uma liberdade de crença, e os direitos humanos estavam assentes nos princípios da revolução desde o seu primeiro dia. O estado sandinista foi um exemplo da construção duma sociedade socialista democrática que fez a diferença qualitativa em comparação com os sistemas petrificados do chamado "socialismo real". Também destacou pela sua liberdade, completamente oposta a outros governos anti-imperialistas extremamente repressivas, como Vietname, Angola, Camboja ou Irão. O sandinismo significou uma esperança para toda uma geração política mundial e mobilizou um movimento amplo de solidariedade internacional, no qual participei de todo o coração desde o princípio.

Mas naquele momento não vimos que os sandinistas governaram de uma forma exageradamente vertical e autoritária. A Frente Sandinista instrumentalizou as organizações de massas como meios de transmissão que passaram para baixo as suas orientações políticas às bases populares. Mecanismos democráticos na realidade nunca foram princípios fundamentais desta revolução. Nesta subestimação da importância de métodos democráticos se pode encontrar uma boa parte das razões que finalmente chegaram aos excessos horríveis que temos que observar atualmente na Nicarágua.

5. Conclusão

[A Nicarágua de hoje não tem que ver absolutamente nada com a Revolução Sandinista dos anos 1980.] Em contradição diametral às alegações de algumas forças da esquerda internacional, o regime Ortega-Murillo não tem nada de progressivo, nem falar de socialista. Um governo que reprime, tortura e mata o seu povo não é um governo de esquerda.

Nesta situação a esquerda tem que avaliar criticamente a experiência da Revolução Sandinista para resgatar do esquecimento todos os seus elementos positivos, e, por outro lado, tirar as consequências precisas para não repetir mais uma vez os erros autoritários e repressivos. A libertação da humanidade não pode ser alcançada por meio de ditaduras de educação, mas unicamente através da mobilização consciente das massas oprimidas. Já está mais do que na altura de se desistir de uma vez por todas dos conceitos estalinistas que causaram – e seguem causando! – tanto sofrimento e desastres políticos!

Resumindo tudo numa frase, quero destacar:

Assim como não pode haver socialismo sem ecologia, o socialismo pelo qual estamos lutando tem que ser democrático ou não haverá!

Intervenção de Matthias Schindler no IV. Encontro Ecossocialista Internacional, Lisboa, 25 de novembro de 2018


Nota:

* IV. Encontro Ecossocialista Internacional

Matthias Schindler
Sobre o/a autor(a)

Matthias Schindler

Técnico de construção de máquinas reformado. Politógo.