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Mulheres de Abril: Testemunho de Sara Amâncio

Tínhamos preparação para a prisão, mas há uma componente subconsciente que não conseguimos controlar. As minhas mãos pingavam, começaram a inchar e a criar umas bolhas. Só mais tarde me apercebi que esse é um dos sintomas do stresse de guerra. Por Sara Amâncio.
Sara Amâncio, 1963.

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


A componente colonialista foi algo absolutamente terrível para a minha geração

Vim nascer a Lisboa, porque o meu pai era militar e os filhos dos militares nasciam no Hospital da Estrela, mas vivia em Sintra. Sou de uma família republicana e antifascista. O meu bisavô e o meu avô tinham participado da implantação da República, os primos eram ativistas antifascistas. No leite materno já veio a consciência política....

Em minha casa falávamos sobre tudo: sobre a situação social do país, a miséria absoluta em que muitos viviam, a repressão, as prisões e torturas levadas a cabo pela PIDE.

Quando era pequena, fazia-me muita confusão ver os miúdos a andarem descalços nas pequenas aldeias à volta de Sintra. Não tinham sapatos para calçar e não comiam nem carne nem peixe, só batatas e alguns legumes. Lembro-me de me contarem que um dia tive gânglios, era uma pré- tuberculose. Não existia penicilina na altura. Tinha tido contacto com um homem que trabalhava na horta do meu avô e que veio a morrer com tuberculose, o que era comum à época.

A primeira ação política de que me lembro foi em 1958. Tinha 12 anos e ia com a minha mãe, em Sintra, distribuir propaganda da campanha do Humberto Delgado. A minha vida passava-se muito em Sintra, porque havia uma decisão na família de que não iria nem para os colégios religiosos nem para os liceus femininos, que eram fascistas. Frequentei os colégios da terra, que eram mistos. Essa era uma questão muito importante para a família. Só fui para o Liceu de Oeiras no meu sexto ano.

Entretanto, dá-se o início da guerra colonial. A componente colonialista foi algo absolutamente terrível para a minha geração. O regime avançou para uma guerra colonial, em três frentes, à custa das pessoas. Só em fascismo, sem democracia, é que é possível utilizar as pessoas como carne para canhão, sem que ninguém tivesse de prestar contas. Tudo em nome da defesa da pátria. Felizmente, o ganho de consciência por parte das próprias Forças Armadas acabou por se virar contra o regime. O sistema gerou o seu próprio antídoto. Para além de toda a resistência que já existia, faltava, de facto, aquela capacidade de o derrubar, e aí as Forças Armadas foram fundamentais. Mas foram 13 anos com consequências na sociedade que prevaleceram por muitos anos.

Em 1962, dá-se a crise académica. No Liceu de Oeiras existia um grupo de ativistas estudantis, que incluía, por exemplo, a Teresa Pacheco Pereira e a Ana Ferreira Abel, que depois estiveram presas comigo, a Raquel Bagulho, o António Barros... Distribuíamos comunicados dentro do Liceu, fazíamos luto, organizávamos marchas desde a estação do comboio até ao liceu vestidos de preto. Era assim que marcávamos as posições. Participávamos nos plenários da Cidade Universitária.

Pedi, entretanto, uma ligação para as Juntas de Acção Patriótica. Quando começaram as aulas do ano letivo seguinte, o meu sétimo ano, a ligação não foi para as Juntas, mas diretamente para a célula do Partido Comunista.

Na faculdade de Ciências integrei a direção estudantil do PCP

Quando entrei para a faculdade de Ciências, em 1963, integrei a direção estudantil do PCP.

Participava na atividade associativa legal, na Mesa da Assembleia Geral da Associação, e na atividade clandestina da organização. A minha função era “controlar” os liceus. A direção estudantil tinha reuniões clandestinas, geralmente fora de Lisboa, com o funcionário do Partido, o Nuno Álvares Pereira, que acabou por nos entregar a todos.

Lembro-me que, no meu primeiro ano letivo na faculdade, organizámos mais um Dia do Estudante. A iniciativa foi novamente proibida, e o recuo passou por promover um jantar na Associação de Ciências (hoje Teatro da Politécnica). Em determinada altura, chega um senhor vestido com a farda das Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade, que nos diz que tem de ir ver o quadro, devido a um problema elétrico. A verdade é que nunca mais apareceu e nunca mais tivemos luz. Era, com certeza, alguém enviado pela PIDE e nós, crédulos, caímos que nem uns patinhos. Tivemos de ir buscar velas e as batatas fritas foram substituídas por outra coisa qualquer. Mas o jantar reuniu imensa gente.

Fui presa a 21 de janeiro de 1965

Dois anos depois de entrar para a faculdade, já estava em Caxias com toda a organização. Fui presa a 21 de janeiro de 1965, com um colega, num quarto alugado, onde estivemos a embrulhar imprensa clandestina . Às cinco da manhã, entrou a PIDE. Além da imprensa, a PIDE apreendeu “uns gadgets” [uns detonadores e afins], que tinham vindo dos militares, o que deu oportunidade à acusação de terrorismo.

Quando o primeiro funcionário foi preso, outro funcionário retomou contacto connosco. Era um homem maravilhoso que, infelizmente, já morreu: o Álvaro Veiga de Oliveira. [Ele era muito humano, muito autêntico, e também muito engraçado e descontraído. Lembro-me de, um dia, apanharmos um táxi e ele ter começado a falar connosco sobre futebol. Ninguém respondeu… Quando saímos do táxi, perguntou-nos se não achávamos que assim estávamos a disfarçar muito mal: “Não é nada para desconfiar, não acham?”]

Ele avisou-nos que corríamos o risco de sermos presos, e aconselhou-nos a “mergulhar”, ou seja, passar à clandestinidade. A reflexão era muito complicada. Tinha dezoito anos e um projeto de vida que não passava só pela resistência antifascista mas também pela ciência, pela investigação. Para mim, isso era algo que estava bastante definido. E, de facto, tudo se precipitou muito rapidamente.

O primeiro funcionário foi detido a 7 de dezembro de 64 e nós a 21 de janeiro de 65. Todas as indicações de que dispúnhamos eram as de que ele estava a ser muito torturado. A certa altura, veio ter comigo um colega que tinha sido expulso de Medicina em Lisboa e estava em Coimbra, avisando-me de que alguém tinha sido preso lá, e que só podia ser denúncia do Nuno Álvares Pereira. Lembro-me de dizer: “É impossível, o Nuno não fala!”.

Quando fui presa, levaram-me para a António Maria Cardoso e, no mesmo dia, para o Reduto Sul de Caxias com as outras companheiras. Primeiro colocaram-nos em celas muito grandes, com muitas mulheres. Depois, foram-nos separando à medida que os interrogatórios avançavam e, finalmente, passámos para o Reduto Norte, que tinha salas de quatro pessoas. Nessa altura, éramos duas do nosso grupo. A acompanhar-nos estiveram primeiro duas funcionárias e depois foram rodando algumas pessoas.

No julgamento éramos 31

O julgamento foi em julho e agosto. O funcionário não chegou a ser julgado, desapareceu na natureza. No julgamento éramos 31. Das raparigas, só eu permaneci a cumprir pena. Dos rapazes ficaram cinco. Apanhei uma pena de dezasseis meses, mas tive uma amnistia de três meses, “graças” à reeleição do Américo Tomás. O facto de pertencer à direção e de pender sobre mim a acusação de terrorismo determinou que fosse condenada. Ao contrário do que estava à espera, não me foram aplicadas medidas de segurança. O companheiro que estava comigo foi condenado a 24 meses, a pena máxima aplicada aos membros do grupo.

Tive como advogado o Jorge Sampaio, que foi fenomenal. Durante as alegações, pôs-me a ser presa em casa de primos. O meu primo testemunhou nesse sentido. Todos os advogados da oposição, que pertenciam àquele grupo do Chiado, estavam ali – o Caldeira, o Zenha, o Soares... Nas minhas alegações acabei por falar sobre a liberdade para as associações de estudantes, a participação dos estudantes na vida académica, a realidade social do país, a liberdade de expressão... não entrávamos na componente política. O Jorge Sampaio dissuadiu-me de falar sobre a guerra colonial no julgamento. Alguns colegas, rapazes, falaram sobre a guerra colonial. Apesar de ser estudante de Biologia, os dois professores, dois homens não alinhados com o regime, que tive como testemunhas tinham sido ambos meus professores de matemática, no liceu e na faculdade.

O mais stressante psicologicamente foi perceber que não havia nada para esconder

Durante os treze meses de prisão estive pouco tempo sozinha. Quando fomos transferidas para o Reduto Norte as salas eram de quatro. Veio para ao pé de nós, por exemplo, a Conceição Matos, depois da tortura. Ela vinha em muito mau estado. Foi terrível. Tinha sido terrivelmente torturada e estava muito afetada.

O Álvaro Veiga de Oliveira, funcionário do Partido que tinha recuperado o nosso contacto, também acabou por ser preso. Depois de ser sujeito a tortura, veio para Caxias, e estava numa sala no mesmo corredor que a minha. A determinada altura, começámos a ouvir do lado de lá: “Quem está aí?”. Lá me identifiquei, ao que ele respondeu aos gritos: “Muito obrigada! Não me denunciaste!”. Estava num delírio. Sabendo que tinha de ser contido, gritava. Tudo isso era resultado do estado em que o deixaram. [A ligação deste funcionário era a única coisa que a PIDE não sabia, porque era posterior à detenção do Nuno Álvares Pereira. Ele acabou por ser preso depois, também por denúncia].

Fui sujeita a tortura durante uma semana, mas não de sono contínuo. O mais stressante psicologicamente foi perceber que não havia nada para esconder, a não ser a existência do funcionário que tinha retomado o contacto connosco. Eles conheciam toda a organização. Essa foi uma parte muito difícil. Existe um muro intransponível entre nós e a polícia e achamos que temos uma vitória moral, ainda que, por vezes, eles tenham a vitória material porque, naquele caso, eles tinham tudo nas mãos.

Na prisão era importante manter a rotina

Tínhamos preparação para a prisão. Existia a noção da importância de organizarmos a vida lá dentro, de criarmos rotinas. Criámos uma sala de estudo, de leitura... Mas há uma componente subconsciente que não conseguimos controlar. As minhas mãos pingavam, começaram a inchar e a criar umas bolhas. Só mais tarde me apercebi que esse é um dos sintomas do stresse de guerra.

Recordo-me que estiveram connosco na sala, quer no Reduto Sul, quer no Reduto Norte, passadores de clandestinos que não tinham organização política, e era uma perturbação na sala. Introduziam uma entropia ali que era difícil de gerir.

Manter a rotina era ainda mais importante para quem tinha penas de prisão mais longas. As presas com seis ou sete anos de pena, que eram responsáveis, por exemplo, pelo sistema de comunicações no Reduto Sul, através de bilhetes deixados por baixo dos bancos de madeira dos balneários, davam muito importância ao cumprimento das rotinas pré-estipuladas, e não ficavam nada satisfeitas quando alguma de nós, como acontecia comigo, era castigada com frequência. Lembro-me de me terem proibido as visitas, tirado os jornais, a música... Um dia chegaram a pregar as janelas da minha sala com pregos. Foi horrível, parecia que me tinham condenado a uma segunda prisão. Também cheguei a ser apanhada a comunicar com as presas da frente. Estava empoleirada em cima do armário a exibir letras nos buracos que se encontravam por cima da porta. Lá veio mais um castigo…

Mantive sempre uma atividade política e associativa nos limites da organização

Quando saí da prisão consegui fazer as cadeiras anuais em falta. Aquele grupo não voltou a organizar-se. Mantive sempre uma atividade política e associativa nos limites da organização, até que fui viver com o pai da minha filha, que tinha saído da prisão em 66 e ainda estava no regime de apresentações mensais na PIDE. Aí os cuidados ainda eram maiores.

Lembro-me de uma manifestação em 1968 contra a Guerra do Vietname que se desenrolou por várias ruas até que, ao descer a Almirante Reis, e sem que tivesse ainda aparecido a polícia, começamos a sofrer cargas de tipos que estavam infiltrados no meio de nós. Tinham as matracas escondidas nos casacos. Assim que começaram a espancar-nos, a polícia cercou-nos. A Maria José Sampaio, mulher do Daniel Sampaio, caiu e eles ficaram a bater-lhe. Eu consegui fugir para uma lateral que me pareceu ter saída. Afinal era um espelho no qual via o meu reflexo. Alguém abriu-nos a porta e subimos no elevador. Quando chegámos lá em cima já lá estavam mais três ou quatro colegas também escondidos. Ficámos ali até tudo acalmar.

Existia o risco de voltar a ser presa, mas não era possível ficar de fora de tudo. Na universidade, participava em RIA's (Reunião Inter-Associações). Um dia estava a participar numa RIA, já grávida, e os colegas avisaram-me que a PIDE estava lá fora. O professor Pereira de Moura aconselhou-me a ir embora imediatamente. Lá saí sozinha. Ouvia os tacões dos meus sapatos no chão. Participava também nas reuniões de convívio com elementos de apoio aos presos políticos.

Quando se deram as cheias de 1967 eu estava muito preocupada com a Mariana Janeiro, de Baleizão, que tinha estado presa comigo, que estava doente em casa de familiares na margem sul. Fui ter com ela. Aquilo causou-me uma raiva imensa. Existia uma situação de miséria e insalubridade extrema que deixou as pessoas totalmente desprotegidas face ao dilúvio.

Em Portugal só consegui dar aulas em regime precário

Licenciei-me em Biologia, em 1969. Quando fiz os últimos exames, a minha filha já tinha nascido. Terminado o curso, passei a fazer um estágio num laboratório de oceanografia que havia no Cais do Sodré, em regime de voluntariado. De manhã ia ao laboratório e à noite dava aulas numa sala de estudo a adultos que tentavam fazer o ciclo preparatório. Acontecia adormecerem nas aulas depois de longos dias de trabalho. Esta era a realidade deste país.

A seguir a 69 surgiu o movimento das cooperativas, com muita gente a fazer a escolaridade. Nessa altura, existia o grande debate sobre se o objetivo era unicamente fornecer consciência política. Quando me pediam para fazer a educação formal, eu colaborava. Não me parecia certo impor o que as pessoas deviam ou não aprender. A educação formal era um direito. E muita gente acabou por conseguir fazer o quinto ano.

Em Portugal só consegui dar aulas em regime precário. Colocaram-me em Évora em Novembro de 1970, onde estive um ano, depois no ano seguinte fiquei na Amadora. Mas só durante o ano letivo, porque não podia seguir a carreira, não podia ser funcionária pública devido a ter uma prisão averbada no registo criminal. Entretanto, pedi o diploma do ensino particular, que também foi recusado face ao registo criminal.

Pela minha casa em Paris passavam pessoas em trânsito

Tendo as portas todas fechadas em Portugal e, através do laboratório de oceanografia, fui a França candidatar-me a uma bolsa, que me foi concedida pelo governo francês. Em 72 saí de Portugal, e só voltei no ano letivo de 76/77, para lecionar na Universidade.


Sara Amâncio, 2016.

Pela minha casa em Paris passavam pessoas em trânsito. A minha mãe avisava-me de quem estava a caminho, escrevendo em código [já estávamos treinadas devido ao tempo que passei na prisão]. Convivia com um grupo de portugueses radicado em Paris, e que tinha saído de Portugal antes de mim. Tínhamos uma creche ao domingo, auto-organizada, que nos permitia ter um dia livre por semana. Participava também noutras redes, que passavam pelos grupos da Universidade, pelos debates da antipsiquiatria, de linhas muito mais heterodoxas. Debatia-se tudo e mais alguma coisa. Existiam ainda os movimentos ecologistas com debates bastante interessantes, como o antinuclear – que era atravessado por algumas contradições, nomeadamente no que respeita às posições do Partido Comunista, que defendia que o nuclear da União Soviética era bom, só o capitalista era mau. Também participei muito diretamente no movimento pelo aborto. Uma intervenção minha foi, inclusive, objecto de um filme deles.

Vim a Portugal a 28 de abril. No início de 74 tinha informações de que existiam movimentações no seio dos militares. Entretanto, deu-se o 16 de Março, a tentativa do Golpe das Caldas, que correu mal. No dia 25 de Abril uma colega do laboratório disse-me que estava em curso uma revolução em Portugal. Pensei: “Outro golpe!”. Era quinta-feira, e até sábado não tive acesso a muita informação. Nesse dia, fui a casa de uns amigos e vi na televisão a libertação de pessoas que conhecia: o Rui D'Espiney, o Luís Guerra... Pensei: “Isto é a sério!”. Fui comprar o bilhete e ainda consegui participar no 1º de Maio. Toda a gente que conhecia, toda a família estava na rua. Foi uma jornada maravilhosa. Depois tive de voltar para França para terminar os meus estudos e só regressei definitivamente em 1976.


* Sara Barros Queiroz Amâncio – Nascida a 7 de Junho de 1946, em Lisboa. Curso Complementar dos Liceus, Liceu de Oeiras, 1963. Licenciatura em Ciências Biológicas, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, 1969. Diplome d'Études Approfondies (DEA), Physiologie Végétal, Université Paris VII, 1974. Doctorat de 3ème Cycle, Physiologie Végétal, Université Paris VII, 1977. Doutoramento em Engenharia Agronómica, Universidade Técnica de Lisboa, 1991. Agregação às disciplinas do Departamento de Botânica e Engenharia Biológica, Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa, 2000. Docente do Ensino Preparatório e Liceal, 1970-1972. Bolseira do Governo Francês, 1972-1975. Assistente na Université Paris VII, 1975-1976. Docente no Instituto Superior de Agronomia, 1976-2016. Professora Associada Jubilada, 2016. Militante do MES, 1976-1979. Adesão ao PS, 1985. Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa na lista do PS, 1994-1998. Uma filha (n. 1969) e dois netos (1996; 2002).

 

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