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Mulheres de Abril: Testemunho de Maria do Nascimento Falcão

Enquanto o meu marido esteve preso, continuei a trabalhar na Cooperativa de Consumo Piedense, a dar apoio às pessoas que estavam clandestinas e a ir às reuniões do Sindicato. A PIDE aparecia na Cooperativa a toda a hora. Por Maria do Nascimento Falcão.
Maria do Nascimento Falcão e o seu filho Carlos.

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


Cooperativa de Consumo Piedense: A Cooperativa do Povo

O meu nome é Maria do Nascimento Bonança Falcão, tenho 78 anos, e nasci no Algarve, em Olhão. O meu pai era pescador e a minha mãe dona de casa. Ela estava sempre muito ocupada. Como gostava muito de ler e aprender, e conseguiu tirar a quarta classe com distinção, montou uma escolinha lá em casa para ensinar os filhos das mulheres que trabalhavam nas fábricas e não tinham com quem os deixar. Ela gostava imenso de crianças.

Quando fiz a quarta classe, a diretora disse à minha mãe que valia a pena fazer um sacrifício para eu poder continuar a estudar. Fiz o exame de admissão e ganhei uma bolsa de estudo. Quando ia começar o terceiro ano, a diretora chamou-me e disse-me que não tinham alunos suficientes para pagar aos professores, mas que eu podia ir assistir às aulas para não me esquecer da matéria.

Ao pé de nós vivia um casal com a filha e o neto. Ele era professor, dava aulas em casa. Tirei lá o francês comercial. A filha era modista. Ia para cada deles nos meus tempos livres para ir aprendendo a coser. Fazia-me confusão o professor ausentar-se frequentemente. Em certas datas nunca estava por casa. A falar com algumas moças lá da rua, começámos a aperceber-nos que ele estava envolvido em política e que, de vez em quando, tinha de fugir para não ser preso. Isso despertou-me a atenção.

Como o meu pai era pescador, e nem sempre conseguiam apanhar muitos peixes, às vezes as dificuldades eram maiores. No Inverno era sempre mais complicado. Depois ele passou para um barco de carga que fazia o percurso desde o Pomarão até Viana do Castelo e, mais tarde, entrou para a Nacional e andou num barco de longo curso. Fazia viagens que duravam muitas vezes três meses, levavam os soldados para Angola. Nessa altura, arranjámos uma casa entre a Cova da Piedade e Almada, no Pombal, na Rua Oliveira Salazar. Eu tinha 14 anos.

A nossa casa era um ponto de apoio do Partido

Conheci o meu marido, o António Rogério Reizinho Falcão [aqui só o conhecem por Reizinho], quando tinha 16 ou 17 anos, num baile ao pé de minha casa. Ele era serralheiro mecânico e já trabalhava no Arsenal. Namorámos dois anos e depois casámo-nos. Entretanto, engravidei da minha filha, que faleceu no parto, porque esteve muito tempo para nascer e vinha com o cordão enrolado à volta do pescoço.

Uma senhora faleceu ao dar à luz um menino, o pai era alcoólico, e a minha vizinha de cima pediu-me para ficar a tomar conta do bebé. O Toninho veio para minha casa com apenas um dia. Era muito doente. Andei com ele por todo o lado. Chegou a estar internado no Curry Cabral, depois na Estefânia e, por fim, no Hospital de Santa Marta, mas acabou por falecer com sete aninhos. Nessa altura já tinha outro filho, o Carlos, com 18 meses.

O meu marido era do Partido Comunista, mas eu não sabia nada sobre as suas atividades. Quando ele me contou, tinha o Carlos quatro ou cinco anos, passei a apoiá-lo.

A nossa casa era um ponto de apoio do Partido. Faziam-se lá reuniões, escondíamos várias vezes pessoas que estavam clandestinas, guardávamos lá muito material para distribuir e para que não fosse apreendido pela PIDE.

A Cooperativa de Consumo Piedense

Tornámo-nos sócios da Cooperativa de Consumo Piedense. Em 1960, abriu lá um concurso para empregada de secretaria. Concorri e fiquei em segundo lugar. Como contrataram duas pessoas, consegui entrar. Era uma cooperativa de trabalhadores, na sua maior parte alentejanos e algarvios que tinham vindo para aqui trabalhar. Era a cooperativa do povo, talvez a maior de Portugal. Tinha posto médico, ação social, seção cultural, drogaria, padaria, mercearia, leitaria, pastelaria... Tinha tudo!

Lá comecei a ter muitos contactos com pessoas que ainda não conhecia. Tinha colegas que já ajudavam pessoas que estavam na clandestinidade, algumas tinham os maridos presos. A GNR aparecia frequentemente, montada a cavalo. Chegavam a subir para o primeiro andar pelas escadas a cavalo. Nunca prenderam ninguém lá dentro, mas prenderam alguns colegas de lá.

As pessoas que estavam clandestinas vinham ter comigo e eu encaminhava-as. Uns precisavam de assistência médica. Levava-os ao Dr Malheiro que, sem cobrar nada, lá os atendia. E eram tantos! Outros precisavam de sítio para ficar, de comida, de roupas. Muitos não tinham nada e viviam em condições muito más. Lembro-me de uma família que estava ali numa casita em Vale de Figueira. Ele era funcionário do Partido. Aquilo era uma vacaria, mas lá conseguiram pintar o espaço e dar-lhe um jeitinho. Tinham um casalinho, um miúdo e uma miúda. Viviam no meio dos animais. Eu e a minha mãe levávamos-lhes o que podíamos. As colegas da Cooperativa também ajudavam com o que tinham.

Eu pertencia ao Sindicato dos Escritórios do Sul e Ilhas e ia às reuniões. Também fiz parte da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, e do Movimento Democrático de Mulheres.

O meu marido foi preso a 11 de junho de 1967

Não estava nada à espera que o meu marido fosse preso. Prenderam-no a 11 de junho de 1967. Ele e os amigos foram para a praia de manhã, mas ele regressou cedo porque tinha de entregar propaganda a um camarada. Ele andava sempre a distribuir o Avante! e outro material, porque tinha uma Vespa que lhe permitia andar de um lado para o outro.

Quando chegou ao sítio combinado, um pinhal no Casal do Marco, começou a desconfiar, porque viu pessoas que não costumavam andar por ali. Ainda fingiu que ia fazer uma necessidade no pinhal, mas eles caçaram-no logo. E depois foram lá a casa à procura de material. Nem entraram pela porta. Foram à minha vizinha do lado e entraram-me em casa pela varanda. Os pides revolveram tudo, reviraram os móveis, viram até dentro do frigorífico. Mas não encontraram Os Avantes! que tinha no autoclismo, onde não procuraram. Só levaram uns livros, entre os quais livros do Álvaro Cunhal - o Até amanhã Camaradas -, e também a minha máquina de escrever. Em casa da minha mãe, que vivia por baixo de nós, estava escondido todo o material de uma tipografia clandestina, mas eles não foram lá. Depois de o meu marido ser preso, conseguimos tirar as coisas de casa da minha mãe com a ajuda de uma tia-avó do Reizinho, uma senhora já de idade, de Nisa, que levava tudo debaixo do xaile para casa de um camarada. Salvámos tudo.

O meu marido esteve preso dois anos, oito meses em Caxias e o resto do tempo em Peniche. Quando foi preso, fartei-me de andar de um lado para o outro para saber dele - de Caxias, para a António Maria Cardoso, onde esteve oito dias, sujeito a tortura do sono e a espancamentos. Quando passou da António Maria Cardoso para Caxias não levava nada com ele, tiraram-lhe tudo. Tive de fazer uma carta ao diretor da cadeia para lhe devolverem os óculos, porque sem eles não via nada. Nunca tive resposta.

Durante o tempo que passou em Caxias ia vê-lo duas vezes por semana. Já em Peniche era só ao domingo, e nem todos. Nessa altura, a direção da Cooperativa era fascista e dificultava-me a vida quando tinha de sair no horário de trabalho, e descontavam-me no ordenado. O meu filho ia comigo visitar o pai. Os camaradas que lá estavam achavam-lhe muita piada, porque ele arranjava sempre histórias novas para contar ao pai.


Carta escrita por Reizinho ao seu filho carlos.

Para ir visitar o meu marido a Peniche tinha de apanhar o primeiro barco, e depois a camioneta na Almirante Reis. O Pôpa, um dos guardas prisionais, era um horror. Muitas vezes cortou-me as visitas por atrasos de um minuto. Dificultavam tudo. Só deixavam entrar algumas coisas e era sempre tudo revolvido. Nas visitas tínhamos um vidro ao meio e um guarda prisional ao lado de cada um de nós. Se desconfiavam de alguma coisa, mandavam-nos logo calar e cortavam-nos a visita.

Enquanto o meu marido esteve preso, continuei a trabalhar na Cooperativa, a dar apoio às pessoas que estavam clandestinas e a ir às reuniões do Sindicato. A PIDE aparecia na Cooperativa a toda a hora. A secretaria onde eu trabalhava tinha uma porta de vidro, que me permitia controlar quem chegava. Um dia apareceu um pide a perguntar por um amigo nosso, o Santana. Levantei-me, fui à secretária do Marques Antunes, que era o meu chefe na altura - e era do Partido e já tinha estado preso - e liguei para a irmã do Santana a avisar do que estava a acontecer. Ele conseguiu fugir. Também consegui avisar o João Gentil a tempo de ele se safar.

Em certa ocasião, levei algumas tarjetas e umas fichas da Cooperativa para casa para adiantar trabalho. A PIDE veio bater-me à porta e perguntou-me o que era aquilo. Reviraram tudo. Eles estavam muito desconfiados. Insistiam que eu estava muito envolvida em atividades políticas. Queriam arranjar provas para me prender. Na prisão, o meu marido sempre negou o meu envolvimento.

Depois de sair na prisão, estava marcado

O meu marido saiu da prisão no dia em que se cumpriram os dois anos de pena, à meia-noite. Eu estava à espera dele, juntamente com vários amigos. Quando ele foi preso, trabalhava na Lisnave mas, depois de sair, estava marcado. Não lhe davam emprego, era uma pessoa indesejável. Por esta altura, fiquei grávida do meu filho Zé, que já morreu há cinco anos.

O Reizinho continuou a sua militância, e chegou a formar uma cooperativa com uns amigos. Entretanto, um camarada foi preso e falou, e vieram avisar o meu marido que tinha de sair daqui, porque estava na iminência de voltar a ser preso.

O meu filho Carlos, que tinha cerca de seis anos, foi com o pai para o Algarve, para casa de uma tia minha, para onde não costumávamos ir. Pouco depois, avisaram-me que ele não podia ficar ali, pelo que fui ter com ele e fomos para Vila Real de Santo António, para casa de outros primos. O meu primo tinha um barquito, que utilizava para ir à pesca no Guadiana, e conseguiu passá-lo sem a Guarda ver. Eles sabiam que ele levava alguém a bordo, só que não sabiam quem. Eu depois também passei a fronteira, porque ele não queria ficar sozinho. Fomos para uma terra perto de Cádis, onde também tinha família. Como não tinham espaço na sua casa, arranjaram-nos um sítio onde ficámos nessa noite. Não consegui convencer o meu marido a ficar por lá. Acabámos por regressar para Vila Real de Santo António. Então, o meu primo pediu a umas pessoas amigas que estavam em França, e que tinham vindo para cá de férias, para o levarem no regresso. Eu voltei para Almada e o meu marido seguiu viagem com eles. Na fronteira francesa, não o deixaram passar, por não ter documentos. Ficou em Espanha, junto à fronteira com a França, com uns portugueses que o alojaram. Levantou-se muito cedo para conseguir passar a fronteira, informou-se sobre as marés, porque tinha de atravessar um rio, pôs duas peças de roupa num saco de plástico e tentou a sorte. Ainda andou a fugir dos cães e dos carabineiros, mas lá conseguiu atravessar a nado. Chegou a França todo encharcado, foi à estação e apanhou o comboio para Paris.

Ele queria lutar cá, pelo que só esteve em França uns meses. Assim que o processo dele deu entrada, voltou para Portugal. Quando chegou cá teve novamente problemas. Ele e o João Raimundo, de quem era muito amigo, tiveram de se disfarçar e andaram por aí fugidos.

Não há palavras para descrever o que sentimos no 25 de Abril

No dia 25 de Abril, o meu marido tinha saído muito cedo de casa, para ir trabalhar lá para os lados de Vila Franca de Xira. Logo de manhãzinha, bateram-me à porta. Como o 1º de Maio se estava a aproximar, fiquei preocupada, pensei que pudesse ser a PIDE. Era o Gomercindo de Carvalho, que dava aulas no Desportivo. Perguntou-me pelo Reizinho e disse-me que se estava a dar a Revolução. Fiquei tão feliz. Pus-me em contacto com as colegas da Cooperativa para avisar toda a gente. Foi algo espetacular. Não há palavras para descrever o que sentimos. O 1º de Maio também foi extraordinário. Fomos todos para a rua. Fizemos uma manifestação enorme, corremos tudo.

 

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