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Mulheres de Abril: Testemunho de Julieta Rocha

Vivíamos muito mal, condenados à miséria por uma ditadura fascista. Não tínhamos direito a nada e passávamos muita fome. A nossa casa tinha chão de terra e estava cheia de ratazanas. Com oito anos, fui trabalhar para a fábrica com a minha mãe. Por Julieta Rocha.
Julieta Rocha, anos 60.

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


 

Fomos condenados à miséria por uma ditadura fascista

Com os meus seis anos, vivia em Lagos, onde nasci, com os meus pais e o meu irmão. O meu pai era pescador e a minha mãe conserveira. Vivíamos muito mal naquela época, condenados à miséria por uma ditadura fascista. Não tínhamos direito nem à saúde, nem à alimentação. Os ordenados não davam sequer para comer. Não tínhamos direito a nada. Passávamos muita fome. A nossa casa tinha chão de terra e vivíamos com as ratazanas.

A minha mãe costumava mandar-nos, a mim e ao meu irmão, fazer mandados [recados]. Dizia-nos para só aceitarmos dinheiro - meio tostão, um tostão -, e nunca aceitarmos pão e figos. Com o dinheiro que nos pagavam, a minha mãe contava poder comprar um pão para acompanhar o peixe que o meu pai trazia da pesca para o jantar. Mas, escusado será dizer, que, como éramos crianças e a fome às vezes apertava, lá acabávamos por aceitar aquele pão branco com aquela banha e aqueles figos torrados. Sabiam tão bem!...

Lembro-me que, quando ia fazer mandados, havia um coronel na nossa frente que nos dava os figos bolorentos, que já estavam para ir para o lixo, com bichos e tudo. Um dia perdi a cabeça e dei com os figos na cara do coronel, que correu a cidade de Lagos atrás de mim. Ele foi-se queixar aos meus pais e, quando cheguei a casa, levei uma tareia da minha mãe. Disse-me que tinha faltado ao respeito ao senhor coronel e eu respondi que ele é que nos tinha faltado ao respeito, ao dar-nos os figos podres. Tinha sempre a resposta na ponta da língua.

Éramos tratados à pancada e à miséria. Os nossos pais fartavam-se de trabalhar e não tinham nada. Eram explorados até dizer chega. Quando eu e o meu irmão pedíamos algo para comer, às vezes levávamos uma bofetada, porque eles estavam cansados do trabalho e da fome e só queriam ter um pouco de sossego. Era assim a vida durante a ditadura fascista de Salazar.

Com oito anos fui trabalhar para a fábrica com a minha mãe

Com oito anos fui trabalhar para a fábrica com a minha mãe. Lá pagavam 17 tostões, mas a mim davam-me só oito. Diziam que eu era uma mocheca [miúda] e que não me iam pagar como se fosse uma mulher. Mas eu trabalhava como as outras. Escorchava as sardinhas, pegava nos cabazes para pôr o peixe na pedra, punha o peixe naquelas grelhas inoxidáveis enormes e depois ia lavá-lo à pia naquela moura, para a sardinha tomar de sal e depois ir para os carrões, para cozer. Quase que caía lá dentro. As minhas lágrimas eram mais do que as sardinhas. Fartava-me de trabalhar. Desde que houvesse peixe, trabalhava, não havia hora de saída. Se fosse preciso, ficávamos lá de um dia para o outro.

Lembro-me de, com cerca de dez anos, me marcar muito ver a GNR ir buscar o meu pai à taberna, onde ele costumava cantar o fado, e de o levar. Quando voltava para casa, vinha todo negro das pancadas que lhe davam.

Até hoje não me esqueço da letra do fado que o meu pai cantava:

À porta da igreja um pobre cego rezando, pedindo a esmola para comer. Mas ela em voz baixa lhe respondeu: 'perdoa-me irmão que não pode ser'. Essa nobre senhora foi rezar, depois de rezar se confessou, e dentro de uma caixa foi deitar dinheiro que da malinha tirou. Ao ver os gestos dela o seu filhinho disse então para a mãe em voz baixa: 'porque não deste esmola ao ceguinho e foste além deitar àquela caixa?'. ' Meu filho é o que fazem os ricos, são esses os que têm mais valor, mais vale dar a Deus do que dar aos pobres, foi o que disse há pouco o bom prior'. 'Mãezinha, no prior não acredites', diz o garoto para a mãe com desdém. 'Dar esmola ao ceguinho é mais bonito porque o cego tem fome e Deus não'”.

[Ouvir o fado cantado pela Julieta aqui.]

Muitas miúdas acabavam por se tornar amantes dos patrões

Como era muito rebelde e não me calava, chamavam-me machote [machona].

Quando já tinha cerca de 14 anos, uma amiga que também trabalhava na fábrica, a Carmelita, queixava-se que não podia ir à casa de banho porque o Joanito Pimenta, que era o encarregado e irmão do patrão, lhe apalpava o peito e o resto do corpo todo. Disse-lhe que não se preocupasse, e fui com ela à casa de banho. Levei uma tábua com vários pregos e quando ele tentou meter-se com a Carmelita ameacei-o: “se você nos toca, desfaço-lhe a cara toda”. Ainda lhe raspei com os pregos e deixei-o a sangrar. Fui logo para a rua. Ela também se despediu, e fomos as duas para a fábrica da Ribeira. Mas muitas miúdas, com muitos irmãos, com muita fome, acabavam por ter de aceitar aquilo e tornavam-se amantes de alguns. Ficavam por conta deles.

Existia uma marginalização incrível, que criava a revolta

Na altura, existiam aquelas distinções horríveis: se fosses empregada de balcão, já eras superior a quem trabalhava na fábrica; se trabalhasses na costura já eras superior à criada de servir; se fosses empregada de escritório, aí já eras superior às outras todas. Existiam estas distinções todas. E as pessoas olhavam umas para as outras como tal.

Num meio tão pequenino, existiam várias coletividades: o Marítimo, onde iam as criadas de servir, os pescadores e os camponeses; o Sport, onde iam as conserveiras e também as criadas de servir e os pescadores; o Metalúrgico onde iam aqueles que tinham um ofício mais especializado; o Boa Esperança, para as meninas da costura; a Sociedade dos Artistas, que era só para grandes mecânicos, já com uma certa arte, bem como para as suas famílias. Depois havia ainda o Grémio, que era dos pequenos patrões, e a Sociedade dos Ricos, que já era do grande capitalismo. Existia uma marginalização incrível, que criava a revolta.

Salazar fazia dos homens escravos mas dava-lhes as mulheres como bibelots

Como era muito reivindicativa, criei má fama. Chamavam-me “gazeada”. Mas depois eu era muito engraçadinha, com uma cinturinha de vespa e, com chitas de 25 tostões, fazia vestidos lindíssimos e andava bem arranjadinha. Os rapazes chamavam-me Gina Lollobrigida e começaram a querer namorar comigo. Naquele tempo era uma desgraça. Uma rapariga que tivesse a infelicidade de namorar um moço três ou quatro anos e que depois fosse largada pelo rapaz, nunca mais tinha ninguém a querer nada sério com ela.

Quando me vinham buscar para dançar eu dizia: “Meu amigo, você veio buscar-me para dançar, não veio para apertar. Ponha-se a andar!”. As raparigas que se recusassem a dançar com alguém uma vez acabavam por ficar sentadas o resto do baile. Mas eu dizia que estava à espera do namorado para que ninguém me chateasse. Tive muitos rapazes a querer namorar comigo. Entretanto, apareceu o meu marido, o Vitorino, que só tinha mais seis meses do que eu. Era pescador, como o meu pai, engraçado e honesto.


Casamento de Julieta Rocha e Vitorino.

Começámos a namorar e ele lá me convenceu de que tínhamos de ter relações, porque assim o meu pai ia querer que casássemos, para não ficar desonrada. Lá me convenceu. Fiquei grávida. Na altura, a consciência do que era a gravidez era tão pouca que fui à vizinha queixar-me dos vómitos constantes. “Julieta, estás grávida? Deitaste-te com o Vitorino?”. Respondi-lhe que sim, mas que tinha sido só uma vez... Para os meus pais, parecia que tinha desabado o mundo. Quando já tinha tudo preparado para casar, aparece uma moça a dizer que o Vitorino a tinha desonrado. Ele negou tudo, mas acabou por ser preso durante três anos.

O Salazar fazia dos homens escravos mas dava-lhes as mulheres como bibelots. Os homens podiam fazer o que quisessem das mulheres. Mas, ao mesmo tempo, impôs uma legislação que previa que aquele que desonrasse alguém era preso.

Quando o Vitorino saiu da prisão, tinha o meu filho Zé António três anos. Como tinha carta de mestre, que tirou aos dezasseis anos, conseguiu logo trabalho como pescador.

A vida era muito difícil, muito miserável

Os mestres das traineiras eram precisamente como os jogadores da bola. O mestre que fizesse muita pesca, ganhava cinco ou seis vezes mais do que o camarada, que é o pescador. Ainda existia o motorista e o contramestre, que também ganhavam mais do que o pescador. Antigamente, as traineiras andavam no mar no Verão, e no Inverno não saíam. Nas traineiras em que se conseguia boa pesca, o pescador conseguia comprar um feijãozinho, banha, carne de porco..., para se ir atamancando durante o inverno. Entretanto, os mestres que conseguiram juntar algum dinheiro quiseram ser patrões e compraram traineiras. Como tinham gasto o dinheiro nas traineiras, já não pagavam como deviam aos pescadores. Montaram mercearias, para os pescadores irem lá comprar fiado. Quando chegava a altura de receber, o mestre perguntava “quantos filhos tens?”. Se o pescador ganhava naquele tempo, por exemplo, mil escudos, ele dizia: “Oh pá, só levas trezentos”. Nunca pagavam tudo, porque diziam que descontavam o que se ia buscar à mercearia.

A vida era muito difícil, muito miserável. Por essa altura, fiz dois abortos. O primeiro fiz com um pé de salsa. Bebi também vinho com canela. Tive de enfrentar aquilo tudo sozinha. Enfrentei as dores, o medo, a vergonha. Quando tive de ir ao hospital, porque estava a passar muito mal, fui maltratada pelas enfermeiras. O outro aborto foi também muito difícil, muito doloroso. Sofri muito física e psicologicamente. Passei um mau bocado. Aqueles bandidos não só não nos davam condições para podermos ter os filhos que gostaríamos de ter como depois nos faziam passar por aquela situação, sem dignidade nenhuma, sem condições de higiene e de saúde.

Partiram-me os dentes todos com uma coronhada

Um dia, o meu marido chega a casa só com duzentos escudos, e diz-me que o patrão só lhe pagou aquilo porque tínhamos feito muitas despesas na mercearia. Mas eu só ia buscar o suficiente para podermos comer todos os dias durante o inverno”. Já estava grávida da minha segunda filha, a Sãozinha, e tinha que comprar roupa para o meu filho mais velho. Reuni com as mulheres dos pescadores para que elas mobilizassem os seus maridos. Cada traineira tinha trinta e tal tripulantes, se juntassem pelo menos dois de cada traineira podiam ir à Capitania do Porto falar com o comandante e dizer que estavam a receber uma miséria e que precisavam do dinheiro para sobreviver.

Juntaram-se cerca de 15. O meu marido não foi, porque não era de participar nessas coisas. Quando lá chegaram, já lá estava a ramona [polícia], que os levou imediatamente para Faro. Passei a noite toda a bater à porta das mulheres dos tripulantes para convencê-las a ir defender aqueles 15 homens que foram presos por pedir o pão para os nossos filhos. Os outros homens também queriam vir, mas eu disse-lhes que isso é o que a polícia queria, e que deviam ir só as mulheres. Fomos para a Capitania. A polícia começou logo a bater-nos. A primeira cacetada que levei foi de um sargento da Guarda, pequenino. Só lhe disse: “Sabe, senhor sargento, com o seu tamanho, sem cacete e pistola, tenho a impressão que lhe dava um soprão e o senhor ia parar não sei onde”. Levei logo outra cacetada e fui parar debaixo dos cavalos. Estava grávida e tinha comigo o Zé António, que tinha apenas três anos.

Fomos para a luta. Dirigimos-nos ao posto da GNR para pedir que libertassem os homens. Eles ameaçaram disparar no primeiro que avançasse. Entreguei o meu filho e disse-lhes: “Lembrem-se de mim”. Avancei e continuei a luta. Acabaram por não disparar. Havia lá um cabo na Guarda Republicana que gostava muito do meu pai e de mim. Ele desapareceu do mapa logo após esse episódio, em que me defendeu. A GNR veio buscar-me e meteu-me dentro do posto, juntamente com outro pescador. Já lá dentro, deram-nos uma enorme carga de pancada. A PIDE utilizou pinças para me levantar os bicos do peito. Não parava de sangrar. Mas a minha revolta não acalmou. Cuspia-lhes sempre que me batiam. Insultaram-me com todo o tipo de palavras obscenas e partiram-me os dentes todos com uma coronhada. Mandaram-me limpar as cavalariças. Entretanto, foram buscar o meu filho para ficar comigo. Dormíamos no meio dos percevejos. Estive lá quase dez dias. Quando saí, vi que tinham ido a minha casa e partiram tudo. Procuravam material político, que nunca tive. A política que eu tinha na altura era a de mim mesma. A de lutar por mim e pelos os outros, sem pertencer a nenhuma organização. A partir daí, nunca mais nos deram trabalho, nem a mim nem ao meu marido. Diziam que eu era uma revolucionária perigosa. Não deixavam o meu marido embarcar e proibiram a minha entrada em todas as fábricas.

Cheguei a ir ao caixote de lixo para alimentar o meu filho

Sem podermos trabalhar no Algarve, fomos, com 24 anos, para Lisboa. A minha filha ficou com a minha mãe, mas o Zé António veio connosco. Passou por tanto, coitadinho! Dormimos muitas vezes no Cais do Sodré, cheguei a ir ao caixote de lixo para alimentar o meu filho. Estivemos assim cerca de oito dias, os três a dormir num banco.

Disseram-me que devia falar com o Almirante Tenreiro, porque era a pessoa mais indicada para nos ajudar. Fui lá ao largo do Cais do Sodré onde era o gabinete dele, mas o senhor que estava à porta disse-me que não podia entrar e falar com ele sem lhe escrever antes. O homem acabou por ter tanta pena de mim que combinou comigo fazer-me sinal assim que chegasse o Almirante para eu saber quem era e poder abordá-lo. Assim foi. Pedi-lhe que me desse um minuto da sua atenção. Ele olhou para mim, perguntou quem era aquela miúda e acabou por pedir para me levarem para o seu escritório. Contei-lhe tudo o que se tinha passado. Arranjou-nos sítio para ficar na Junqueira, deu-me 500 escudos e arranjou emprego para o meu marido na Companhia Portuguesa de Pesca. O meu marido acabou por ficar lá vários anos. Alugámos um quarto em Almada e depois vim para a casa onde estou hoje. Uma amiga minha do Algarve tinha-se separado do marido e veio para Almada com a irmã. Como estavam a precisar de um homem para poderem alugar a casa, ficou em nome do meu marido. Viemos viver com elas. Entretanto, quando uma voltou para o Algarve e a outra foi para a Suíça, ficámos cá sozinhos. Ainda chegámos a alugar quartos, porque dos mil escudos que o meu marido ganhava, 850 eram logo para a renda da casa.

Um dia decidi ir falar com os engenheiros da Lisnave, para tentar arranjar lá trabalho para o meu marido nos reboques, onde ganhava mais do que na Companhia de Pesca. Tentei falar com eles várias vezes, mas diziam-me sempre que tinha de enviar uma carta primeiro. Um dia, vi passar um camião e enfiei-me nele, no meio da nafta. Fiquei toda farrusca. Consegui entrar nos escritórios. Os engenheiros olharam para mim muito espantados. Expliquei-lhes porque estava ali e lá consegui que dessem trabalho ao meu marido.


Julieta Rocha, 1º de Maio de 2017. Foto de André Beja.

Ouvi falar na rádio da Revolução, e fui logo para a rua

No 25 de Abril morávamos nesta casa. O meu marido estava a trabalhar na Lisnave e eu já tinha a minha terceira filha, a Marta, que tinha na altura dois anos. Tinha os três filhos comigo. Ouvi falar na rádio da Revolução, e fui logo para a rua. Fui para Lisboa e depois para Caxias, para assistir à libertação dos presos políticos. Foi uma grande alegria, pensei que as coisas iam mudar para melhor. Mas, por outro lado, tinha consciência de que ainda não estava nada definido.

Mais tarde, descobri que vários amigos do meu pai, de quem eu gostava muito quando era miúda, pertenciam à PIDE. E aquelas mentes não se iam apagar de um momento para o outro. O meu pai ainda tentava desculpá-los, dizendo que aquilo era o ganha pão deles, mas eu respondia que nós tínhamos passado muita fome e não fomos para essas coisas, nunca denunciaríamos um vizinho. Eu já tinha essa consciência.

Termos relacionados Mulheres de Abril, Sociedade
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