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Mészáros: Igualdade substantiva e democracia substantiva

István Mészáros deixou-nos no passado dia 1 de outubro, mas no seu legado encontramos uma obra teórica e uma trajetória de vida da mais alta importância para as próximas gerações de lutadores sociais. Publicamos aqui o seu último artigo escrito para a revista Margem Esquerda.
Mészáros: Igualdade substantiva e democracia substantiva
István Mészáros nasceu no ano de 1930, em Budapeste, Hungria, onde se graduou em Filosofia e se tornou discípulo de György Lukács.

No dia 19 de dezembro, completaria István Mészáros os seus 87 anos. Em homenagem ao seu aniversário, o Blog da Boitempo disponibilizou o último artigo que o pensador marxista escreveu para a revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, tendo integrado também o seu conselho editorial. Publicado no segundo semestre de 2015, na edição de número 25 da revista, o artigo discute o problema das determinações substantivas, fundamental para pensar conceitos como “igualdade” e “democracia” para além do capital.

Igualdade substantiva e democracia substantiva

Por István Mészáros

O problema das determinações substantivas refere-se a uma mudança fundamental de uma futura sociedade que, para se tornar historicamente sustentável, precisa de ter a igualdade substantiva como princípio norteador vital do seu metabolismo social. Da mesma forma, nem é preciso dizer que alguns outros conceitos reguladores (como o da democracia substantiva) não podem ser dissociados desse requisito, no sentido de que todos eles precisam de ser concebidos e implementados no espírito da igualdade substantiva.

Para mim, é da maior importância política, tanto na teoria quanto na prática, contrastar a nossa conceção do metabolismo social radicalmente diferente do futuro – sem o qual a humanidade não sobreviverá – com as formas existentes. É por isso que uso a expressão “substantivamente democrático” (e, é claro, “democracia substantiva”, cujas características definidoras fundamentais a tornam indissociável da “igualdade substantiva”) em contraste inclusive com a conceção de democracia, que já foi genuinamente liberal e que, sob nenhuma condição, poderia ser substantiva, mesmo que tenha conseguido ser mais ou menos substancial num sentido político limitado. Nesse sentido limitado, a política pode ser mais ou menos “substancialmente democrática” sob um regime liberal, mas jamais poderá ser substantivamente democrática. No caso do contraste feito por mim aqui, não pode haver política “mais ou menos substantivamente democrática” ou “mais ou menos substantivamente igual”. Ou ela é substantivamente democrática e substantivamente igual ou não é. Em outras palavras, no último caso, ela de modo algum é substantiva. Em contraposição, sob certas condições históricas é perfeitamente legítimo falar de relações políticas/sociais “mais ou menos substancialmente democráticas” ou “mais ou menos substancialmente iguais”.

É nesse sentido que usei a expressão “substantiva” em Para além do capital e que continuo a usá-la no livro que estou a escrever sobre o Estado. De facto, já discuti esses problemas nos mesmos termos no meu livro sobre A teoria da alienação em Marx, que comecei a escrever no ano de 1959, em Londres. Isto porque a profunda preocupação que tenho com a substância crucial desse assunto, na verdade, remonta bem explicitamente ao outono de 1951, a uma conversa que tive com Lukács, na época em que o governo húngaro aumentou o preço dos bens vitais, alimentação e vestuário, em 300% e os salários em somente 18 a 21%.

Na ocasião, discutimos essa medida na Associação Húngara de Escritores com Márton Horváth (que atacou Lukács com veemência no “debate Lukács” dos anos 1949-1951), membro do Politburo do Partido e responsável pelos assuntos culturais/ideológicos. Alguns dos meus amigos escritores e colegas recitaram a resposta que Horváth queria ouvir, dizendo que o povo aprovou entusiasticamente a referida mudança. Eu mantive-me em silêncio total, mas ele voltou-se para mim e perguntou: “E você, camarada Mészáros, o que você ouviu?” Minha resposta foi esta: “Eu não sei que parte do país os meus amigos visitaram, mas onde eu vivo, que é um distrito da classe trabalhadora, as pessoas estão praguejando e maldizendo o Partido e o governo”.

Como lhe era típico, ele respondeu: “Camarada Mészáros, espera-se que você os lidere, não que siga atrás deles!” Isso mostrou que ele sabia muito bem o que o povo em geral estava a pensar; o que ele queria saber era como os escritores propagandeariam a decisão do Partido. Dada a grande diferença entre a receita dos trabalhadores e a dos principais escritores, os aumentos de preço dos alimentos e do vestuário não afetaram significativamente os escritores, mas atingiram duramente os trabalhadores. O aumento de 18 a 21% no salário dos escritores proporcionou-lhes uma compensação razoável, ao passo que os trabalhadores sofreram uma redução importante na sua necessidade principalmente de suprimentos essenciais de alimentação e vestuário, como resultado dos seus salários inadequados.

Precisei de algumas décadas de trabalho duro, num período de fortes agitações e reviravoltas históricas, para entender as complexas ramificações históricas e sociais da diferença vital entre o que é chamado de “mais igualdade” (que significa nenhuma igualdade real) e o requisito historicamente irreprimível de igualdade substantiva.

No dia seguinte, contei a Lukács essa experiência desconcertante na Associação de Escritores e ele riu-se comigo, num tom irónico e até sarcástico, sinalizando que desaprovava o comportamento de Horváth. E, então, explicou-me que uma solução mais equitativa seria impossível, pois requereria somas elevadas, com as quais a economia não conseguiria arcar. Na ocasião, a única coisa que consegui dizer foi: “Eu entendo, mas deve haver outra maneira”. Naquela altura da vida, eu não fazia a menor ideia do que poderia e deveria ser essa “outra maneira” e de como se poderia colocar em prática uma alternativa real às enormes desigualdades existentes. Eu só sabia que “deve haver outra maneira”. Naturalmente eu também sabia que as massas do povo estavam praguejando e maldizendo e que delas faziam parte os meus camaradas de classe e companheiros de infância.

Precisei de algumas décadas de trabalho duro, num período de fortes agitações e reviravoltas históricas, para entender as complexas ramificações históricas e sociais da diferença vital entre o que é chamado de “mais igualdade” (que significa nenhuma igualdade real) e o requisito historicamente irreprimível de igualdade substantiva.

As sociedades democráticas liberais frequentemente afirmam a sua pretensão de legitimidade política insuperável, proclamando a sua intenção de instituir reformas políticas que promovam a “democracia representativa” e “mais igualdade” (a par da “taxação progressiva”, etc.) e prometendo proteger a sociedade da “interferência excessiva do Estado”. Na realidade, poucas dessas pretensões e intenções resistem a um exame sério. Mas, as sociedades do tipo soviéticas pós-revolucionárias tampouco lograram viver à altura dos princípios que haviam proclamado e acabaram retrocedendo ao mais desigual dos moldes capitalistas (ver Gorbachev, etc.). Ao derrubar temporariamente o Estado capitalista, elas foram capazes de introduzir por certo tempo algumas reformas sociais limitadas, mas não a mudança estrutural necessária que surgiu no horizonte histórico na forma do desafio objetivo para a realização da igualdade substantiva.

Na verdade, a questão da igualdade substantiva está ligada a um certo número de assuntos vitais, que posso apenas mencionar sumariamente aqui. Ela diz respeito ao capital como tal (isto é, ao sistema do capital na sua totalidade) e não apenas ao capitalismo.

Igualmente, ela diz respeito ao Estado do sistema do capital como tal (isto é, ao Estado do capital em toda a sua variedade conhecida e factível), e não apenas ao Estado capitalista. Noutras palavras, trata-se da redefinição e reprodução permanente e historicamente viável do metabolismo social na sua totalidade, e não apenas da derrubada do domínio político estabelecido.

As ilusões associadas à noção de “democracia direta”, etc. precisam de ser avaliadas nessa linha, dentro do quadro de referência do modo radicalmente redefinido de reprodução societária. A razão disso é que as projeções irrealizáveis da “democracia direta” permanecem irrealizáveis precisamente por estarem presas na armadilha das limitações estruturais do domínio político vigente, enquanto o desafio histórico inevitável é a transformação radical de todos os níveis do metabolismo social de uma maneira não hierárquica. A política pode iniciar mudanças sociometabólicas importantes e de fato fundamentais, mas não pode constituir uma mudança por si só. Ela pode afetar de maneira significativa as condições da reprodução material, mas ela própria é dependente – inclusive quanto ao modo de articular as suas demandas por uma mudança importante – da natureza do dado ou visado quadro de referência reprodutivo da ordem material (bem como, é claro, do seu correspondente cultural e ideológico).

Mudanças políticas estratégicas são sempre formuladas nos termos de tal quadro estrutural da ordem material – não importando que ele não esteja explicitado ou até tenha sido cinicamente camuflado – o que ocorreu sob as condições da história passada, marcada pelos dados objetivos da determinação e da espoliação classistas. E quando se visa, no nosso tempo, a uma tomada de decisão globalmente política de cunho socialista para o futuro, esta precisa de deixar claros os seus próprios termos práticos de referência e em conformidade com o quadro de referência reprodutivo da ordem material visado para a nova sociedade. O “diretamente político” significa muito pouco nesse tocante, se é que significa algo, ao passo que o materialmente substantivo faz toda a diferença (“sob o teto das nossas casas”, como já dizia Babeuf).

Em função da sua viabilidade histórica, esse tipo de redefinição da política e da sociedade requer que o capital seja erradicado totalmente do metabolismo social. Sem isso não pode haver igualdade substantiva (ou democracia substantiva). Naturalmente, esse requisito acarreta também a erradicação total (ou o “fenecimento”) do Estado como o conhecemos. O metabolismo reprodutivo do capital não pode ser erradicado sem isso, pois, no seu âmago, o Estado é necessariamente hierárquico. Ele foi historicamente constituído como o expropriador e usurpador da tomada de decisão global do processo de reprodução societária. Além disso, o quadro de referência reprodutivo, de cunho material, da ordem metabólica social do capital não teria nem condições de funcionar, sem os processos de tomada de decisão hierárquica estruturalmente arraigados do Estado do capital correspondente.

Uma consideração adicional precisa igualmente de receber a devida ênfase neste ponto: a capacidade de restauração do capital. Pois, por sua natureza, o capital só pode ser inexoravelmente omnipotente, já que não é capaz de reconhecer qualquer limite. Daí o absurdo completo da fantasia de Gorbachev (e de qualquer outra similar), postulando uma “sociedade de mercado controlada”. (Como bem sabemos, essa fantasia pode ter muitas variedades ilusórias, especialmente em condições de severas crises económicas.)

De modo algum nos causa surpresa que, no curso do desenvolvimento histórico conhecido, apregoado nos termos dos postulados ilusórios da concepção democrático-liberal da “redistribuição mais equitativa da riqueza” (em nome do “Estado de bem-estar” ou do que quer que seja), as promessas feitas não deram em absolutamente nada.

Tendo em vista todas essas considerações, a única solução historicamente sustentável para o futuro é a reconstituição radical do metabolismo social no espírito do princípio orientador da igualdade substantiva. Isso só poderá ser visualizado bem além da irrealizável terra do nunca e do lugar nenhum “substancialmente mais equitativo” da esperança piedosa. De modo algum nos causa surpresa que, no curso do desenvolvimento histórico conhecido, apregoado nos termos dos postulados ilusórios da concepção democrático-liberal da “redistribuição mais equitativa da riqueza” (em nome do “Estado de bem-estar” ou do que quer que seja), as promessas feitas não deram em absolutamente nada. As relações sociais resultantes não só não são “substancialmente mais equitativas”, como não são nem sequer um pouquinho mais equitativas. Pelo contrário, temos testemunhado a obscena concentração cada vez maior da riqueza. Tanto que até mesmo alguns economistas políticos neoclássicos decentes, como Thomas Piketty, expuseram-na nos seus escritos, mesmo que não tenham apresentado qualquer solução.

Reorganizar a sociedade, transferindo o poder da tomada de decisão aos produtores livremente associados, é o único modo factível de introduzir o planeamento significativo. Isso é condição absoluta, totalmente incompatível com a natureza inerente do capital, devido à sua centrifugalidade estruturalmente insuperável. Essa dimensão do metabolismo social fundamental da nossa ordem estabelecida – isto é, a sua incompatibilidade com o planeamento global, mas não com o “planeamento” parcial/gerador de antagonismos das grandes corporações – é agravada pelo requisito sistémico do metabolismo reprodutivo de ordem material do capital, que tende inexoravelmente para a globalização materialmente invasiva, sem que haja qualquer processo correspondente e factível de tomada de decisão global no plano político legitimador do Estado. Pois seria nada menos que um absurdo completo se (ou quando) os apologistas da ordem metabólica social estabelecida do capital visassem um sistema global ao seu gosto, sem um processo de planeamento globalmente viável e historicamente sustentável.

É claro que um processo de planeamento racional não antagónico, num plano global e amplo, é inconcebível sem a correspondente modalidade apropriada de intercâmbio entre as células constitutivas – que podem ser chamadas de “microcosmos” – da abrangente ordem social. Nesse sentido, o planeamento globalmente viável só é factível sobre a base de um processo de reprodução societário horizontalmente coordenado (isto é, verdadeiramente não hierárquico). Essa é uma questão paradigmática de reciprocidade social, no centro da qual encontramos o requisito histórico da igualdade substantiva. Sem planeamento, o inevitável intercâmbio global na nossa reprodução societária presente e futura não pode ser considerado historicamente sustentável. Ao mesmo tempo, o planeamento em escala global é inconcebível sem a remoção das desigualdades hierárquico-estruturais tão evidentes no mundo atual.

Quanto a esse aspecto, uma vez mais, defender o “substancial” (em termos de alguma mudança postulada, mas irrealizável) não significa absolutamente nada, porque o seu quadro de referência orientador e a correspondente medida, que delimita os melhoramentos dos seus projectos, permanecem na ordem hierárquica existente, estruturalmente arraigada. O assim chamado “mais equitativo” pode até ser, num sentido parcial, “relativamente mais substancial” do que a sua variedade anterior, mas inevitavelmente falha – como fica amplamente comprovado no desenvolvimento histórico real – no sentido vital de que não representa nenhum desafio real à ordem social existente, no que se refere aos seus parâmetros estruturais auto-sustentáveis e auto-justificadores, muito bem ilustrados pela apregoada pretensão liberal do “mais equitativo”. (Ver as projeções originais – feitas por liberais como lorde Beveridge e outros – a respeito do “Estado de bem-estar” e a sua realização histórica patética e liquidação definitiva, até mesmo nos poucos países capitalistas privilegiados.) Para sair desta ordem social estruturalmente desigual necessitamos de uma igualdade substantiva qualitativamente diferente como princípio orientador e também da medida apropriada de sua realização.

Este é também o único modo pelo qual a questão da transição para uma transformação socialista da ordem metabólica social pode adquirir um significado apropriado: provendo os critérios e a medida pelos quais poderão ser confirmadas as realizações particulares rumo a uma sociedade substantivamente equitativa na sua totalidade.

Por razões historicamente compreensíveis, os movimentos políticos particulares que tentam afirmar as suas políticas certamente têm de prometer resultados tangíveis aos seus potenciais seguidores. Este é um problema muito difícil, porque tende-se a impor as demandas colocadas pelas expectativas de curto prazo dos movimentos políticos, em vez de se operar com a perspectiva historicamente sustentável de longo prazo. Na verdade, porém, a transformação estrategicamente viável não é factível sem a plena observância dos requisitos objetivos e subjetivos de longo prazo. Infelizmente, contudo, a distinção entre “estratégia e tática” frequentemente é usada para justificar a negligência em relação ao longo prazo, quando se diz que “isso e aquilo” foram pensados “apenas taticamente”, embora se encontrassem em contradição direta ao longo prazo estrategicamente viável.

O facto é que a adoção de tais táticas pode provocar um descarrilamento sério da necessária estratégia de longo prazo. Além disso, não haverá estratégia viável sem um quadro de referência orientador apropriado às determinações globais das tendências e potencialidades de longo prazo historicamente determináveis. É por isso que a nossa preocupação com o contraste entre substantivo e substancial é de importância vital. Quando se visualiza uma transformação socialista historicamente sustentável não se pode abandonar o princípio orientador radical e a medida da igualdade substantiva, os quais podem permitir a constante avaliação do período de transição para uma ordem metabólica social fundamentalmente diferente.

Tudo isto é perfeitamente compatível com as opiniões de Marx. Porém, no nosso período histórico, o quadro de referência conceptual deve ser articulado no sentido anteriormente exposto, refletindo as condições agravadas e cada vez piores da irreversível fase descendente de desenvolvimento do capital, com a sua tendência para a destruição global da humanidade, que só poderá ser evitada através da constituição de uma ordem socio-metabólica substantivamente equitativa. A nossa crítica ao Estado deve ser concebida a partir dessa perspectiva.


István Mészáros é autor de um extensa obra, várias vezes premiado (Attila József, em 1951; Deutscher Memorial Prize, em 1970; e o Premio Libertador al Pensamiento Crítico, em 2008), afirmando-se como um dos mais importantes pensadores da atualidade. Nasceu no ano de 1930, em Budapeste, Hungria, onde se graduou em Filosofia e se tornou discípulo de György Lukács, no Instituto de Estética. Deixou o Leste Europeu após o levante de outubro de 1956, e exilou-se na Itália. Deu aulas em diversas universidades, na Europa e na América Latina, e recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia pela Universidade de Sussex, em 1991.

Entre os seus livros, destacam-se Para além do capital – rumo a uma teoria da transição (2002), O desafio e o fardo do tempo histórico (2007) e A crise estrutural do capital (2009), A obra de Sartre e O conceito de dialética em Lukács, todos publicados pela Boitempo.


Artigo publicado no Blog da Boitempo, traduzido por Nélio Schneider e revisto pelo Esquerda.net.

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