Está aqui

Líbia: o odor a mudança de regime cansativamente familiar

Primeiro era Saddam. Depois Khadafi. Agora há uma vaga para o Tirano Chanfrado Favorito do Ocidente. Por Robert Fisk, The Independent
Sim, Khadafi está completamente balhelhas, descabelado, um chanfrado ao nível de Ahmadinejad do Irão ou de Lieberman de Israel. Foto de Ammar Abd Rabbo

Então, vamos tomar «todas as medidas necessárias» para proteger os civis da Líbia, não é? Que pena não termos pensado nisso nos últimos 42 anos. Ou 41 anos. Ou… bem, vocês sabem o resto. E não dos deixemos enganar com o que significa realmente a resolução da ONU. Mais uma vez, será uma mudança de regime. E, tal como no Iraque – para usar uma das únicas frases memoráveis de Tom Friedman nessa altura – quando o último ditador se for, quem sabe que tipo de morcegos sairá do caixão? Uma coisa que podemos fazer é localizar os futuros Khadafis e Saddams que estamos a criar neste momento - os futuros sádicos das câmaras de tortura.

E depois da Tunísia, depois do Egipto, tem que ser a Líbia, não tem? Os árabes da África do Norte estão a exigir liberdade, democracia, libertação da opressão. Sim, isso é o que têm em comum. Mas o que estas nações têm em comum também é que fomos nós, o Ocidente, que alimentamos as suas ditaduras década após década após década. Os franceses andaram aos abraços com Ben Ali, os americanos fizeram festas a Mubarak e os italianos trataram bem de Khadafi até que o nosso próprio glorioso líder [Tony Blair] o foi ressuscitar de entre os mortos políticos.

Seria por isto, interrogo-me, que não ouvimos falar de Lord Blair de Isfahan recentemente? Sem dúvida que deveria estar ali, aplaudindo com júbilo uma outra intervenção humanitária. Talvez só esteja a descansar num intervalo. Ou talvez, como os dragões no «Reino das fadas» de Spenser, esteja a vomitar em silêncio panfletos católicos com todo o entusiasmo de um Khadafi em pleno jorro.

Então saquemos a cortina só um pouco e olhemos a escuridão por atrás dela. Sim, Khadafi está completamente balhelhas, descabelado, um chanfrado ao nível de Ahmadinejad do Irão ou de Lieberman de Israel - que uma vez, a propósito, se pôs com baboseiras sobre como Mubarak podia «ir para o inferno», mas tremeu de medo quando Mubarak foi de facto atirado nessa direcção. E existe um elemento racista em tudo isto.

O Médio Oriente parece produzir estes pândegos – ao contrário da Europa, que nos últimos cem anos, só produziu Berlusconi, Mussolini, Estaline e aquele tipo baixinho que tinha sido cabo na infantaria da reserva do 16° regimento bávaro e que realmente ficou marado quando foi eleito chanceler em 1933 - mas agora estamos a voltar a limpar o Médio Oriente e podemos esquecer o nosso próprio passado colonial neste recreio. E por que não, quando Khadafi diz ao povo de Bengasi que «iremos 'zenga, zenga' (ruela a ruela), casa a casa, quarto a quarto». Sem dúvida isto é uma intervenção humanitária que é mesmo, mesmo, mesmo uma boa ideia. Ao fim e ao cabo não haverá «tropas no terreno».

Claro, se esta revolução fosse reprimida com violência, digamos, na Mauritânia, não creio que exigíssemos zonas de exclusão aérea. Nem na Costa do Marfim, já agora. Nem em nenhum outro sítio da África que não tivesse depósitos de petróleo, gás ou minerais ou não tivesse importância na nossa protecção a Israel, esta última sendo a verdadeira razão porque nos preocupamos tanto com o Egipto.

Eis portanto algumas coisas que poderiam dar mau resultado, um olhar de viés desses morcegos ainda no ninho, no interior brilhante e húmido desse caixão. Suponhamos que Khadafi se agarra com todas as forças a Trípoli e que britânicos, franceses e americanos abatem todos os seus aviões, rebentam com todos os seus aeroportos, atacam as suas baterias de veículos blindados e mísseis e ele simplesmente não desaparece. Reparei na quinta-feira, pouco antes da votação na ONU, que o Pentágono começava a dar instruções aos jornalistas sobre os perigos de toda a questão; que podia levar «dias» só a instalar uma zona de exclusão aérea.

Depois há a truculência e a velhacaria do próprio Khadafi. Vimo-lo [a 18 de Março], quando o seu ministro dos Negócios Estrangeiros anunciou um cessar-fogo e um fim das «operações militares», sabendo perfeitamente que uma força da NATO comprometida com a mudança de regime não o aceitaria, permitindo assim a Khadafi apresentar-se como um líder árabe amante da paz que é vítima da agressão ocidental: Omar Mukhtar está vivo novamente.

E se simplesmente não chegarmos a tempo, se os tanques de Khadafi continuarem a andar? Enviamos então os nossos mercenários para ajudar os «rebeldes»? Instalamo-nos provisoriamente em Bengasi, com conselheiros e ONGs e a tradicional treta diplomática? Notem como, neste momento crítico, já não falamos das tribos da Líbia, esse audaz povo guerreiro que invocamos com tanto entusiasmo há um par de semanas. Agora falamos da necessidade de proteger «o povo da Líbia», já sem referir os Senoussi, o grupo mais poderoso de famílias tribais de Bengasi, cujos homens vêm travando a maior parte dos combates. O rei Idris, derrubado por Khadafi em 1969, era Senoussi. A bandeira «rebelde» vermelha, branca e verde – a velha bandeira da líbia pré-revolucionária – é de facto a bandeira de Idris, uma bandeira Senoussi. Suponhamos que chegam a Trípoli (o objectivo de todo o exercício, não é?), serão bem recebidos aí? Sim, houve protestos na capital, mas muitos destes valentes manifestantes vieram originalmente de Bengasi. O que farão os apoiantes de Khadafi? «Dissolver-se-ão»? Descobrirão de repente que afinal sempre odiaram Khadafi e unir-se-ão à revolução? Ou continuarão a guerra civil?

E se os «rebeldes« entrarem em Trípoli e decidirem que Khadafi e seu filho demente Saif al-Islam devem receber o que merecem, junto com os seus capangas? Vamos fechar os olhos às matanças de represália, aos enforcamentos públicos, ao tipo de tratamento que os criminosos de Khadafi têm encontrado há muito? Interrogo-me. A Líbia não é o Egipto. Uma vez mais, Khadafi é um chalado e, dado seu estranho comportamento com seu Livro Verde na varanda de sua casa bombardeada, é muito provável que volta e meia roa os tapetes também.

Depois há o perigo de que as coisas «corram mal» do nosso lado, as bombas que atingem civis, os aviões da NATO que podem ser abatidos ou explodir em território de Khadafi, a súbita suspeita entre os «rebeldes»/«povo líbio» /manifestantes pela democracia de que o Ocidente tem intenções ulteriores para a sua ajuda. E há uma aborrecida regra universal nisto tudo: no mesmo segundo em que se empregam as armas contra outro governo, por maior razão que se tenha, as coisas começam a se desencadear. No fim de contas os mesmos «rebeldes» que na manhã de quinta expressavam a sua fúria ante a indiferença francesa, agitavam bandeiras francesas na quinta à noite em Bengasi. Viva a América. Até que…

Conheço os velhos argumentos, claro. Por pior que tenha sido a nossa conduta no passado, que devemos fazer agora? É um pouco tarde para perguntar. Amávamos Khadafi quando ele chegou ao poder em 1969e depois dele ter mostrou ter cabeça de galinha odiámo-lo e voltamos a amá-lo – refiro-me à mãozinha de Lord Blair – e agora o odiamo-lo de novo. Não teve Arafat um registo similar mas às avessas com os israelitas e os americanos? Primeiro foi um super-terrorista que desejava destruir Israel, depois um super-estadista aos apertos de mão a Yitzhak Rabin, depois um super-terrorista de novo quando se deu conta que tinha sido enganado sobre o futuro da «Palestina».

Algo que podemos fazer é localizar os Khadafi e Saddams futuros que estamos a criar agora, os futuros chanfrados, sádicos das câmara de tortura que cultivam os seus jovens vampiros com a nossa ajuda económica. No Uzbequistão, por exemplo. E no Turcomenistão, no Tajiquistão e Chechénia e outros «estãos». São homens com quem temos de lidar, homens que nos venderão petróleo, nos comprarão armas e que manterão na linha os «terroristas» muçulmanos.

É tudo cansativamente familiar. E agora estamos metidos nisto de novo, aos murros nas secretárias em unidade espiritual. Não temos muitas opções, pois não, a menos que queiramos ver outra Srebrenica? Mas esperem aí. Isso não aconteceu muito depois de termos imposto a nossa zona de «exclusão aérea» na Bósnia?

Publicado no La Jornada

Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net

Artigos relacionados: 

Termos relacionados Internacional
(...)