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A Lição de Toni Puig em Torres Vedras, uma utopia?

No que respeita ao binómio cultura-cidade, diz Toni Puig que há uma cultura que já não é cultura: é somente entretenimento. Por Rui Matoso
Toni Puig - Fotografia de Joan Horrit
Toni Puig - Fotografia de Joan Horrit

Toni Puig esteve em Torres Vedras, no passado dia 14 de outubro, para participar no III Fórum Social Intermunicipal – uma escolha muito acertada da organização, que felicito. No entanto, a vinda do catalão só resultará plenamente se o executivo municipal, e respetivos serviços públicos, estiverem genuinamente focados em construir “novas respostas para velhos problemas” (mote do Fórum).

Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Toni Puig e de o entrevistar na Direção de Cultura de Barcelona, em 2008, e de ter organizado com ele - em parceria com a EGEAC, a Academia de Produtores Culturais, e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas -, dois seminários em Lisboa. Desde então considero-o uma referência na teoria e na prática da “terapia” sociocultural, ou seja, na procura incessante de novos métodos e processos de indução de vitalidade e viabilidade urbanas. Toni Puig conhece na prática, como poucos, o mal-estar civilizacional provocado por múltiplos fatores, que podem ser aglutinados sob esse grande chapéu da globalização neoliberal e do capitalismo tardio, e cujos efeitos se repercutem no bem-estar das populações e na qualidade de vida nas cidades, tais como: descrença na legitimidade política, afastamento da participação cívica, despolitização, homogeneização cultural (perda de diversidade), inércia social, etc.

A proposta de Toni Puig é muito simples e conhecida desde há muito, e nem sequer é original do ponto de vista autoral, pois existem muitos outros “urbanautas” portugueses e estrangeiros que já (quase) tudo disseram sobre o assunto. Assim, é incompreensível que, salvo raras excepções, muitos autarcas portugueses continuem a ignorar, a fingir ignorar, ou simplesmente a recusar aquilo que são as boas práticas de gestão colaborativa e participativa no domínio da cultura e da criatividade urbana.

Em Torres Vedras, bem como noutros municípios, não será certamente por falta de sugestões e reivindicações que os sucessivos executivos municipais podem justificar a sua inoperacionalidade neste âmbito. As causas são também sobejamente conhecidas e, em suma, prendem-se com o enfoque na manutenção e captura do poder pelos aparelhos partidários. Contudo, paradoxalmente, como bem sabemos, não há dimensão política com maior potencial de participação e transformação social do que a dimensão cultural, em sentido lato.

No que respeita ao binómio cultura-cidade, e voltando a Toni Puig, diz ele que há uma cultura que já não é cultura: é somente entretenimento. É aquela que foi proposta insistentemente pela maioria das políticas culturais fossilizadas há mais de trinta anos de adoração absoluta de artistas ávidos de pasta [no original], de políticos carismáticos e mediáticos de ideias curtas, de gestores culturais de gabinete que inundam com os seus estereótipos de beleza morta/desactivada os teatros, os museus e as cidades. Mas, a cultura do século XXI, pelo contrário, inscreve-se aqui: no cuidado atento e bem intencionado ao valor de uma atmosfera transbordante de sentido cívico e de humanidade. Esta cultura do Séc. XXI, é a cultura partilhada entre os cidadãos nos seus territórios, e que confere vitalidade cultural e sentido individual, colectivo e cívico às pessoas que procuram a utopia de ver na cidade (como defendeu Artistóteles) a possibilidade de um bem-comum e da realização plena dos indivíduos e das comunidades políticas (polis).

Fazer com que esta “utopia” aconteça é tarefa de todos, mas, a cada um as suas responsabilidades. Desde logo a principal responsabilidade tem obrigatoriamente de ser assumida pelos responsáveis autárquicos (executivo, assembleia e serviços municipais), umas vez que é nestes que se acumulam poder e recursos, bem como os deveres inerentes ao cargo de “funcionário público” que ocupam, e pelo qual são remunerados. Uma gestão pública colaborativa e participativa, constantemente atenta aos desejos e aspirações culturais da pluralidade dos cidadãos, mobilizadora da democracia e da cidadania, e, principalmente do direito à cidade e à criatividade.

Realizar isto é o desígnio de todos aqueles que procuram concretizar a ideia de cidade como construção humana destinada ao bem-comum e à liberdade. Uma cidade inquieta, aberta às propostas dos cidadãos, nomeadamente dos mais jovens, dotada de um serviço público proativo e dialogante com as exigências, as propostas e as críticas dos habitantes: “o governo municipal democrático lidera, convoca, inspira, coordena, apoia, propõem, motiva, assinala, assume, dialoga e empenha-se sempre em em construir um horizonte amplo de confiança no espaço comum (…) começando por escutar atenta, global e pluralmente todos os cidadãos, as associações cívicas e os movimentos sociais em especial”. Estas e outras ideias de Toni Puig podem ser consultadas no seu website, onde o autor disponibiliza todos os seus escritos: http://www.tonipuig.com/.

Todavia, não sendo nada disto inédito nas atuais conceções de governância municipal, a mudança efetiva de paradigma não acontece, por que razão?

Artigo de Rui Matoso, Dirigente do Bloco de Esquerda e professor universitário

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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