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Economia de guerra em Portugal

Após dois anos e meio e milhares de milhões de euros de sacrifícios impostos à população, Portugal é um país mais pobre, reatou com as taxas de natalidade do século XIX e a emigração em massa da era da ditadura.
"Apesar de não estar em guerra, Portugal encontra-se, sob a égide da Troika, no seu terceiro ano de economia de guerra". Foto de José Sena Goulão/Lusa

Portugal é um país exangue. O desemprego que se situava na trajectória dos 20%, diminuiu ligeiramente nos dois últimos trimestres, “graças” a uma diminuição da população activa. Esta é fruto de uma emigração em  massa cujos fluxos atingem ou mesmo ultrapassam os da década de sessenta, em que  se assistiu ao grande êxodo dos portugueses fugindo da miséria, da ditadura e da guerra colonial[1]. Metade dos desempregados não recebe subsídio de desemprego e contam-se aos milhares os excluidos do Rendimento Mínimo de Inserção, dos Abonos de Família ou do Complemento Social para Idosos.

É que, apesar de não estar em guerra, Portugal encontra-se, sob a égide da Troika, no seu terceiro ano de economia de guerra, apesar dos (ou por causa dos) resultados económicos desastrosos das políticas levadas a cabo de há três anos a esta parte. Com efeito, Portugal é o país em relação ao qual se pode dizer, com a precisão de uma experiência realizada em laboratório, que os milhares de milhões de euros de sacrifícios impostos à população, não se compadeceram da dívida cuja trajectória é vertiginosa, nem do défice sistemáticamente revisto no sentido da alta a cada nova avaliação da Troika.

É no entanto munido dos resultados desta experiência de laboratório tendo-se  traduzido  em  três anos consecutivos de recessão que o governo português acaba de apresentar um dos orçamentos mais austeros da história da democracia portuguesa desde 1977. O ajustamento orçamental representa 2.3% do PIB e realiza-se essencialmente através da punção directa dos salários dos funcionários públicos e das reformas da função pública.

Não é, por conseguinte, de admirar,  que não haja senão o governo para fingir acreditar que, não obstante a redução drástica do rendimento disponível das famlias a que conduzirá inevitavelmente o “seu” orçamento, o consumo privado e o investimento surgirão para sustentar a sua hipótese de crescimento de 0.8%. E isto  tanto mais quanto a punção fiscal violenta de 2013 será mantida e que em 2014 haverá novas reduções nas despesas da educação, da saúde e das transferências sociais. Restam as exportações mas estas últimas são tributárias da procura externa.

Como sucede com todas as economias de guerra, a que tem curso em Portugal não faz apenas perdedores. Ao mesmo tempo que os  funcionários e reformados da função pública contribuem por 82% para o esforço de guerra de 2014, à banca e aos monopólios da energia é apenas solicitada uma contribuição excepcional de 4% e o governo deu-se mesmo ao luxo de baixar de dois pontos o imposto sobre os lucros das empresas, primeira etapa de um processo visando baixá-lo gradualmente  para 19% ou mesmo  17%, em 2016, no respeito do sacro-santo princípio néo-liberal de criação de um clima propício ao investimento.

Há outros ganhadores da crise, a começar pelos credores aos quais se destina, no  orçamento para 2014, um “pecúlio” equivalente ao orçamento da saúde. É em nome desses credores que sacrifícios desumanos são impostos ao povo de um dos países mais pobres e mais desiguais da União Europeia. É em seu nome que se encerram escolas, que se racionam medicamentos, que se limita ou se exclui o acesso de uma parte da população aos cuidados de saúde,  que se vendem em leilão bens públicos.

As políticas de austeridade violentas alimentam-se delas próprias: elas geram o seu próprio prosseguimento e a sua intensificação afim de remediar os estragos que contribuiram para aprofundar. Cada euro de défice “economisado” em Portugal, traduziu-se numa perda de 1.25 euros de PIB e num aumento de 8.76 euros da dívida[2]: é assim que os credores estão seguros de dispôr sempre de  uma dívida – verdadeiro poço sem fundo- para financiar.

Ao instar das dívidas grega, irlandesa ou chipriota, para só falar dos países que estão sob intervenção “efectiva” da Troika, a dívida portuguesa não é pagável. Ela não resulta dos desvios de um povo que viveu acima das suas possibilidades, mesmo se os peritos do FMI falam com insistência na necessidade de baixar o salário mínimo nacional  que é, em Portugal,  de 485 euros ilíquidos mensais, ou seja um dos mais baixos da zona euro e da União Europeia.

País semi-periférico, dotado de uma economia com fraco valor acrescentado e muito dependente do exterior, Portugal “pagou” a sua adesão ao euro, com uma quase-estagnação económica, se bem que a dívida pública só tenha tido uma trajectória verdadeiramente ascendente na sequência da crise financeira e das importantes transferências do orçamento de Estado para sustentar a economia e salvar a banca. Não podendo voltar-se para o Banco Central Europeu (BCE) para assegurar o seu financiamento, Portugal tornou-se, depois da Grécia e da Irlanda, a terceira vítima da especulação dos mercados financeiros, a qual abriu a via à intervenção da Troika.

Após dois anos e meio e milhares de milhões de euros de sacrifícios impostos à população, Portugal é um país mais pobre, reatou com as taxas de natalidade do século XIX e a emigração em massa da era da ditadura. A população, uma das mais envelhecidas da UE, diminui. A dívida reportada ao PIB aumentou mais de 25 pontos para atingir 127.6% em finais de 2013, segundo as previsõs do governo, e o défice não está contido. Os credores representados pela Troika já advertiram do montante dos cortes que será necessário operar em 2015, ainda que o Memorando acabe em Junho de 2014.

Quer seja sob a forma de um novo plano de “salvamento”, ou sob qualquer outra  forma, e, no quadro actual das instituições europeias, Portugal continuará sob o domínio  da Troika e a sua população  será submetida a novas provações. O país é    já  uma  outra Grécia, e se alguma dúvida subsistir a este respeito, a imagem de mães portuguesas obrigadas a abandonar os filhos a instituiçõs sociais, ao mesmo tempo que recém-vindos fazem a sua entrada no clube dos multi-milionários, bastaria para o comprovar.

Versão portuguesa do artigo publicado no diário francês Libération a 11 de dezembro de 2013

NB – O artigo refere-se à proposta de Orçamento para 2014

Cristina Semblano

Economista, leciona economia portuguesa na Universidade de Paris IV, Sorbonne



[1]Avalia-se em 120 000 o número de portugueses que emigraram só no  ano de 2012, ou seja um fluxo equivalente aos da década de sessenta, se bem que o êxodo de 2012 ultrapassa o do ano de 1966 (a população portuguesa é de cerca de 10.5 milhões de habitantes)

[2]Como referido pelo Professor José Castro Caldas (Comissão de Auditoria da IAC)

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Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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