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A dívida privada na era capitalista

O endividamento das classes populares faz parte do processo de acumulação primitiva que permitiu ao capitalismo impor-se como modo de produção dominante, primeiro na Europa e depois no resto do Mundo. Por Eric Toussaint. 

Esta é a segunda parte de três do artigo dedicado à dívida. A primeira parte está disponível aqui.

Na Europa, do século XVI ao século XVIII, o endividamento privado das classes populares e a repressão do não pagamento das dívidas contribuiu para constituir uma massa de proletários: penas de prisão, mutilações, abertura de cadeias obrigaram as populações empobrecidas a aceitar trabalho nas fábricas. Tudo isto faz parte do processo de acumulação primitiva que permitiu ao capitalismo impor-se como modo de produção dominante, primeiro na Europa e depois no resto do Mundo |1[4]|.

Uma grande parte da massa de proletários que migrou para as cidades ou para as fábricas que começavam a desenvolver-se era constituída por populações rurais sobre-endividadas que tinham sido desapossadas das suas terras pelos credores.

O não pagamento das dívidas foi violentamente reprimido até meados do século XIX nos países que estiveram no centro da expansão do sistema capitalista industrial: a Europa Ocidental e a América do Norte.

Os pobres culpados de não pagamento das suas dívidas eram castigados com pesadas penas. A pena capital foi de aplicação corrente em Inglaterra até ao século XVII. Nos EUA, no Estado da Pensilvânia, em finais do século XVIII, os maus pagadores podiam ser chicoteados, pendurados no pelourinho com uma orelha pregada ao poste, que depois era cortada. Arriscavam-se também a serem marcados com um ferro em brasa. Em França eram sistematicamente aplicadas penas de prisão. Tudo isto era cumulado com despejos das casas e penhora de bens.

Nos EUA, pouco tempo após a independência, foram organizados movimentos de protesto por agricultores cujas terras e bens tinham sido penhorados por falta de pagamento dos impostos e taxas. Este pagamento era exigido em dinheiro, embora muitos camponeses não o

tivessem, ou tivessem muito pouco, por fazerem trocas directas e pagamentos em espécie. Muitos camponeses tinham prestado serviço nos exércitos revolucionários mas nunca tinham recebido um salário integral. No Massachusetts, em 1782 em Groton e em 1783 em Uxbridge, os cidadãos organizaram-se e atacaram as autoridades, exigindo a devolução dos bens confiscados. No início da Rebelião de Shays, em 1786, as multidões impediram os tribunais de ter assento em Northampton e em Worcester, depois de o governador Bowdoin ter reforçado as acções jurídicas destinadas a recuperar as dívidas e de as leis terem imposto uma taxa suplementar destinada a financiar o pagamento da parte do Massachusetts na dívida externa dos EUA. Daniel Shays, que deu nome ao movimento, era um antigo combatente não pago. Foi levado a tribunal por não pagamento de impostos.

Rebelião de Thays, 1786 

A partir de 1798 foi organizado um movimento de autodefesa dos endividados que exigiu a adopção de uma legislação protectora contra os atos arbitrários dos credores e da justiça. Em 1800 foi aprovada uma lei federal, mas esta limitava-se a proteger os banqueiros e os comerciantes apanhados em incumprimento de pagamento. No entanto, os Estados continuaram a recorrer às suas próprias leis, que na maioria dos casos favoreciam os credores.

Scott Standage |2[5]| cita um livro de 1828, The Patriot; or, People’s Companion, que defendia a abolição do encarceramento dos devedores, afirmando que a dívida era uma forma de «escravatura civil» equiparável à escravatura dos Negros – os devedores, tal como os escravos, não dispunham de nenhuma garantia constitucional.

A fuga aos credores foi uma das causas da corrente migratória do Leste para o Oeste norte-americano, o chamado Far West. A maior parte dos europeus que participaram na colonização do Novo Mundo nos séculos XVII e XVIII tinha-se endividado para pagar a viagem e estava sujeita a uma relação de servidão em relação aos credores. Durante muitos anos, foram obrigados a reembolsar a dívida inicial e ameaçados de prisão e mutilação em caso de não pagamento. Calcula-se que entre metade e dois terços dos europeus que se instalaram nas 13 colónias britânicas da América do Norte entre 1630 e 1776 ficaram nessas condições de servidão por dívida |3[6]|. Este tipo de servidão por dívida apenas foi abolido nos EUA em 1917.

O mesmo tipo de contrato de endividamento para financiar a colonização foi aplicado na generalidade do Império Britânico. Milhões de pobres abandonaram a Índia nestas condições, para se instalarem nas Caraíbas britânicas, na ilha Maurícia, na África do Sul e noutras partes do Império. Só na Maurícia, entre 1834 e 1917, instalaram-se quase um milhão e meio de indianos que foram obrigados pela miséria a aceitar contratos de servidão por dívida |4[7]|.

Em 1875, na Índia, no vasto planalto do Decão, estalaram motins durante os quais os camponeses endividados se revoltaram para destruir sistematicamente os livros de contas dos usurários e assim repudiar as suas dívidas |5[8]|. A revolta durou dois meses e envolveu umas trinta aldeias, numa área de 6500 km2. Constituiu-se uma comissão de inquérito parlamentar em Londres e em 1879 foi aprovada uma lei, denominada em inglês «Dekkhan Agriculturists’ Relief Act» |6[9]|, que ofereceu alguma protecção aos camponeses endividados.

Em 1880, uma crise da dívida atingiu os pequenos e médios camponeses dos EUA. Na década de 1930, nova crise, cujos efeitos massivos foram descritos por John Steinbeck no célebre romance As Vinhas da Ira (em inglês:The Grapes of Wrath), publicado em 1939. Estas crises sucessivas levaram à desapropriação de milhões de camponeses endividados nos EUA, em benefício das grandes empresas privadas do agronegócio.

No século XIX, aquando da generalização da Revolução Industrial e da expansão do capitalismo, os patrões aplicaram o truck system, que permitia endividar de forma permanente os assalariados. Estes, enquanto aguardavam o pagamento do salário, tinham de comprar na loja do patrão todos os bens essenciais para sobreviverem: alimentos, aquecimento, iluminação, vestuário,etc. Eram obrigados a comprar a preços exorbitantes, de tal forma que, no acto do pagamento do salário e depois de descontadas as compras, viam-se frequentemente obrigados a reconhecer uma dívida, pois as despesas ultrapassavam o montante do salário. Para pôr fim a esta situação, os operários tiveram de travar duras batalhas. Foi também uma das razões que levaram os operários a constituírem cooperativas para produzir alimentos (padarias, etc.) ou para vender a preços comportáveis os produtos de primeira necessidade. Por fim, o truck system foi proibido.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os anos 1950-60 foram marcados, nos países mais industrializados (mas o mesmo se passou em vários países do Sul, por exemplo na Argentina), por um período de forte crescimento económico (os «Trinta Anos Gloriosos» [de 1945 a 1975]) que permitiu aos trabalhadores obter, através da luta, avanços sociais importantes: nítido aumento do poder de compra, consolidação do sistema de segurança social, melhoria dos serviços públicos, em particular a nível da educação e da saúde. Além disso o Estado efectuou algumas nacionalizações, reforçando assim o seu poder de intervenção económica. As populações tiraram proveito da riqueza criada à escala nacional e a parte da massa salarial no total do rendimento nacional aumentou.

A partir da ofensiva neoliberal iniciada no Chile em 1973, com o ditador Pinochet, e na Argentina em 1976, com a ditadura de Videla (ditaduras que tiveram o apoio de Washington), e desenvolvida a seguir por Thatcher e Reagan nos anos 1980, os salários reais voltaram a ser comprimidos. Nos países mais industrializados, o consumo de massa prosseguiu, à custa do endividamento crescente da população |7[10]|. Os governos, os bancos e as grandes empresas privadas da indústria e do comércio incentivaram o recurso massivo ao endividamento por parte dos agregados familiares.

O encarceramento por dívidas relativas a multas não pagas ao Estado não desapareceu por completo. Por mais espantoso que pareça, o não pagamento das dívidas privadas, mais precisamente as dívidas privadas ou multas devidas ao Estado, continua a ser passível de prisão em vários países europeus, apesar de diversos acordos internacionais o proibirem |8[11]|. Em França, a prisão por dívida foi abolida por dois breves períodos – em 1793 e em 1848. Foi definitivamente suprimida do direito civil e comercial pela lei de 22 de Julho de 1867. O Código de Direito Penal suprimiu-a em 1958 em matéria criminal quanto a indemnizações por perdas e danos no âmbito civil. Actualmente a prisão por dívida apenas se aplica às condenações por multa, às custas judiciais e aos pagamentos em proveito dos cofres do Estado, e mesmo nesses casos quando se trate duma infracção de delito comum e não podem dar origem a pena perpétua. Por conseguinte, em França a sentença judicial consiste em encarcerar ou deter uma pessoa solvente por falta de pagamento de certas multas, às quais foi condenada pela tesouraria pública ou pelas administrações alfandegárias |9[12]|.

Na Bélgica continua a ser possível aplicar um castigo penal (chamado na lei belga «aprisionamento subsidiário») pelo não pagamento das multas devidas ao Estado, apesar de há 20 anos os sucessivos ministros da Justiça recomendarem a sua não aplicação. Numa resposta do ministro da Justiça belga a uma questão parlamentar levantada por um deputado da extrema direita (Vlaams Belang), numa época em que este partido recolhia mais de 20 % dos votos, ouviu-se da boca do ministro que «O artigo 40 determina que “Na falta de pagamento no prazo de dois meses a contar da sentença ou do julgamento, seja por contraditório ou à revelia, a multa poderá ser substituída por pena de prisão, cuja duração será fixada no juízo ou sentença, não podendo exceder seis meses para as condenações por crime, três meses por delito e três dias por contravenção”». «Os condenados a prisão subsidiária poderão ser sujeitos a prisão no local onde sofreram a pena principal.» «Se apenas foi pronunciada uma multa, a pena de prisão por falta de pagamento deve ser equivalente à prisão correccional ou de polícia, consoante o carácter da condenação.» O artigo 41 especifica: «Em todos os casos o condenado pode livrar-se da pena de prisão pagando a multa; não pode esquivar-se à penhora de bens oferecendo-se para sofrer a pena de prisão.» |10[13]| Na prática, um juiz belga pode emitir uma sentença de prisão subsidiária (isto apenas em matéria penal). Nesse caso, o juiz tem de calcular uma multa e indicar que, se a pessoa assim deseja ou se não tem meios, deve ser encarcerada. É claro que o rico preferirá pagar a multa e evitar a prisão, enquanto as pessoas de baixo rendimento e com pouco ou nenhum património terão de ir presas. Chama-se a isto justiça de classe.

O ministro acrescentou ainda: «Em 2000, em matéria correccional, em 22 632 condenações, o Ministério Público abriu 3745 processos de execução de penas de prisão subsidiária. Em 2001, em 21 375 condenações a multa, apenas foram abertos 1745 processos de execução de prisão subsidiária.»

Mesmo que na prática as penas de prisão não sejam aplicadas, ou só raramente, o facto de alguns países manterem essa possibilidade é inquietante. De facto, caso a extrema direita aceda ao governo e sejam reforçadas as medidas repressivas, é possível que venham a ser pronunciadas sentenças de prisão por dívida aos bodes expiatórios das classes populares. Não faltam no aparelho de justiça juízes reaccionários capazes de tomar iniciativas que reforçariam o carácter de classe da aplicação da lei.

Dívidas hipotecárias ilegítimas e despejos 

Quando rebentou a bolha imobiliária[14] no Japão (década de 1990), nos EUA (2006-2007), na Irlanda e na Islândia (2008), em Espanha (2009), dezenas de milhões de famílias das classes populares viram-se na contingência de não conseguirem pagar as suas dívidas e começaram a ser vítimas de despejos em massa |11[15]|. Num contexto generalizado de diminuição do salário real, de desemprego massivo e de condições de

empréstimo abusivas, os efeitos dessas dívidas foram catastróficos para uma fatia crescente das camadas populares. Nos EUA, desde 2006, 14 milhões de famílias foram desalojadas pelos bancos |12[16]|. Em Espanha, foram mais de 300 000 famílias. Vemo-nos confrontados uma vez mais, na história dos países do Norte, com um fenómeno massivo de desapropriação brutal. Nos EUA a Justiça contabilizou pelo menos 500 000 casos de contratos imobiliários abusivos e fraudulentos, mas os números reais são muito superiores. Em Espanha a legislação invocada pelos bancos para expulsar as famílias das suas casas data da época do ditador Franco. Na Grécia, no quadro do terceiro Memorando aceite pelo

governo de Tsipras em 2015, os bancos começam a ter mão livre para despejar as famílias incapazes de pagar as suas dívidas hipotecárias |13[17]|. Nos EUA, em Espanha, na Irlanda, na Islândia, na Grécia, etc., nasceu um novo tipo de movimento e de mobilizações, a fim de resistir a esta política de despejo/desapropriação.

Manifestação da plataformas fitados pela hipoteca (PAH), em Espanha

Dívidas ilegítimas do estudantes

Nos países anglo-saxónicos mais industrializados e no Japão, as políticas neoliberais aplicadas ao sistema de educação aumentaram drasticamente o custo do ensino superior e restringiram muito o acesso às bolsas de estudo. Este fenómeno vai-se estendendo à escala mundial.

Isto obrigou dezenas de milhões de jovens das classes baixas a endividarem-se em proporções imenso a fim de concluírem o curso superior. Nos EUA a dívida estudantil ultrapassa o bilião de dólares [=um trilhão na escala portuguesa e americana, =10^12] (o que corresponde a mais do dobro da dívida externa total – privada e pública – da África subsariana em 2015 |14[18]|). Este número torna-se um limiar simbólico ao exprimir a gravidade da situação. Dois estudantes em cada três estão endividados e devem em média 27 000 dólares. Em 2008, 80 % dos estudantes que concluíam o mestrado (master) de Direito tinham acumulado uma dívida de 77 000 dólares se frequentassem uma universidade privada ou de 50 000 dólares no caso dos estabelecimentos de ensino público. O endividamento médio dos estudantes que concluíram um ano de especialização em Medicina atinge os 140 000 dólares. Uma estudante que tinha feito o mestrado de Direito declarou a um jornal italiano: «Creio que nunca conseguirei reembolsar as dívidas que contraí para pagar o meu curso, às vezes penso que quando morrer, ainda terei mensalidades da dívida para a universidade por pagar. Actualmente tenho um plano de pagamento a 27 anos e meio, mas é demasiado ambicioso,

porque a taxa de juro[19] é variável e tenho muita dificuldade em pagar (…). O que mais me preocupa é que não consigo fazer poupanças e a minha dívida continua a assombrar-me» |15[20]|.

No Japão, um estudante em cada dois está endividado. O endividamento médio dos estudantes equivale a 30 000 dólares. No Canadá a tendência é a mesma |16[21]|. Ir para a universidade custa cada vez mais caro, ao mesmo tempo que no mercado de trabalho, mutilado e saturado, é cada vez mais difícil encontrar um emprego com salário decente. Uma vez concluídos os seus estudos, os jovens endividados e respectivas famílias têm cada vez mais dificuldade em reembolsar as dívidas. Para o fazerem são frequentemente obrigados a aceitar empregos muito precários e condições de trabalho degradantes. Os bancos arrecadam lucros avantajados graças à dívida estudantil. Tal como no caso das dívidas hipotecárias ilegítimas, novas formas de luta e novos movimentos estão a nascer, para combater as dívidas estudantis ilegítimas. É nomeadamente o caso, nos EUA, do movimento Strike Debt! Assistimos a tentativas de federar as várias resistências  numa frente única contra a dívida: dívidas estudantis, dívidas hipotecárias, dívidas de consumo, dívidas ligadas aos impostos, sem esquecer a dívida pública[22] |17[23]|.

O sobre-endividamento afecta e degrada as condições de vida de um sector cada vez maior das camadas populares em todos os países mais industrializados. Na Bélgica, o número de pessoas sujeitas ao regime colectivo de dívidas mais do que duplicou entre 2007 e 2017.

As mulheres chefes de família monoparental são por toda a parte duramente afectadas pelo sobre-endividamento. Os sofrimentos ligados às humilhações a que estão sujeitas as pessoas sobre-endividadas não param de aumentar. A intrusão das autoridades na vida privada e no domicílio das pessoas sobre-endividadas multiplica-se e agrava-se. Dada a precarização do trabalho, o pagamento dos salários de miséria pelo trabalho a tempo parcial e mesmo a tempo inteiro, cada vez mais assalariados e assalariadas passam a ser vítimas do sistema da dívida.

A fábrica do homem endividado

Ao longo das últimas décadas, a política de destruição das conquistas sociais levada a cabo por sucessivos governos e pela classe capitalista visa nomeadamente atacar os contratos de trabalho estável e colectivamente negociados. Os direitos elementares dos trabalhadores e dos beneficiários dos subsídios sociais são apresentados como privilégios e como obstáculos à competitividade e à flexibilidade. Foi levada a cabo uma campanha sistemática em favor do autoemprego, criando uma miragem de liberdade. Há um número crescente de pessoas que são levadas a endividar-se a fim de se autoempregarem, de criarem a sua microempresa, de fazerem de si mesmas uma empresa, de explorarem elas próprias «o seu capital humano». Como diz Maurizio Lazzaretto no livro A Fábrica do Homem Endividado, «na economia da dívida, tornar-se capital humano ou empreendedor de si mesmo, significa assumir os custos e os riscos duma empresa flexível e financeirizada, custos e riscos que não são apenas, longe disso, os da inovação, mas sobretudo os da precariedade, da pobreza, do desemprego, dos serviços de saúde minguantes, da penúria de alojamentos, etc.» |18[24]|.

Aumenta o número de pessoas que, tendo tentado a experiência de autoemprego, caem no sobre-endividamento e perdem o pouco que possuíam. Mais adiante, Lazzarato escreve: «O processo estratégico do programa neoliberal, no que respeita ao estado-providência, consiste numa progressiva transformação dos “direitos sociais” em “dívidas sociais” que as políticas neoliberais tendem por sua vez a transformar em dívidas privadas, paralelamente à transformação dos “detentores de direitos”

em “devedores” dos fundos de desemprego (no caso dos desempregados) e do Estado (no caso dos beneficiários dos rendimentos mínimos sociais)» |19[25]|. Enquanto as políticas dos governos neoliberais levam ao empobrecimento dos assalariados (bloqueamento ou redução dos salários, precarização, etc.) e dos outros detentores de direitos sociais (bloqueamento ou redução das pensões de reforma, redução ou supressão das ajudas sociais, degradação ou desaparecimento de certos serviços públicos, diminuição ou supressão dos subsídios de desemprego, redução ou supressão das bolsas de estudo, etc.), «a finança pretende enriquecê-los através do crédito e das acções. Nada de aumentos salariais directos ou indirectos (reformas), mas antes crédito ao consumo e incitamento à renda bolsista (fundos de pensão, seguradoras privadas); nada de direito à habitação, mas sim crédito imobiliário; nada de direito ao ensino, mas sim empréstimos para pagar os estudos; nada de mutualização contra os riscos (desemprego, saúde, reforma, etc.), mas sim investimento em seguros individuais». |20[26]|

Muitos dos refugiados que chegam à Europa, depois de transporem obstáculos tremendos, endividaram-se para poderem empreender a grande viagem para uma terra de asilo. São levados a aceitar as piores condições de trabalho, a fim de reembolsarem as suas dívidas, sabendo que uma parte das suas famílias, que ficou no país de origem, está sujeita à pressão dos credores. Muitas mulheres imigradas são levadas a prostituir-se, para reembolsarem uma dívida ilegítima.

Desde a crise que eclodiu nos países mais industrializados em 2007, assistimos a um novo endurecimento do «sistema da dívida» na sua faceta privada: dívidas hipotecárias abusivas, dívidas estudantis ilegítimas, dívidas de consumo alienantes e depauperantes. Tudo isto caminha de mãos dadas com a atuação de governos que se servem do aumento da dívida pública, que provocaram, para reforçarem a ofensiva contra as conquistas sociais do século XX.

Apoiar as iniciativas de luta contra as dívidas privadas ilegítimas 

Como é possível que pessoas humilhadas, sobre-endividadas, sujeitas aos abusos dos bancos, escorraçadas dos seus lares, e ainda por cima responsáveis por uma parte da dívida [pública], sejam capazes de se mobilizar em conjunto para pôr fim ao pagamento da dívida pública do Estado ou para acções colectivas pelos direitos dos trabalhadores? Se foram derrotadas na sua luta pessoal por não existir um movimento de resistência suficientemente forte para impedir os despejos das habitações,

para escapar a outras formas de sobre-endividamento, pode acontecer que já não tenham forças para continuar a bater-se, que olhem para a dívida pública ilegítima, assim como os combates colectivos pelos direitos sociais, como algo que não lhes diz respeito. É preciso apoiar as iniciativas que se lançam na luta contra as dívidas privadas ilegítimas.

Fim da segunda parte. A terceira parte versará sobre as dívidas privadas ilegítimas nos países em desenvolvimento e sobre os rumos alternativos, tanto no Norte como no Sul.

Tradução de Rui Viana Pereira

Revisão Maria da Liberdade

 

Notas

|1| K. Marx destaca como fontes, muitas vezes violentas, de acumulação primitiva que permitiram ao capitalismo levar a melhor sobre outros modos de produção: a separação radical entre o produtor e os meios de produção, a supressão dos bens comunais, o levantamento de divisórias no campo, a captura dos instrumentos de trabalho dos artesãos, a repressão sanguinária contra os expropriados (que tudo perderam por causa das dívidas que não conseguiam reembolsar), a conquista colonial e a repartição à régua dos continentes açambarcados pelas potências europeias, o sistema da dívida pública (ver Livro 1 d’O Capital. A acumulação primitiva). Silvia Federici acrescenta a isto a caça às bruxas, esse vasto movimento sanguinolento de repressão contra as mulheres, de finais do século XV a meados do século XVII. Ernest Mandel, no seu estudo «Acumulação primitiva e industrialização do Terceiro Mundo», resume a posição de Marx e sublinha que «podemos mesmo afirmar que Marx subestimou a importância da pilhagem do Terceiro Mundo para a acumulação do capital industrial na Europa ocidental». Rosa Luxemburgo, em 1913, em A Acumulação do Capital, retoma o processo de acumulação primitiva e seu prolongamento na era imperialista de finais do século XIX ( https://www.marxists.org/francais/luxembur/works/1913/rl_accu_k_30.htm). Ver igualmente Harvey, David (2010), Le Nouvel impérialisme, Paris, Les Prairies ordinaires; assim como Jean Batou, Accumulation par dépossession et luttes anticapitalistes : une perspective historique longue, Contretemps, https://www.contretemps.eu/accumulation-par-depossession-et-luttes-anticapitalistes-une-perspective-historique-longue/

|2| Standage, Scott, Born Losers: A History of Failure in America, Harvard University Press, 2005.

|3| Galenson, David (March 1984). «The Rise and Fall of Indentured Servitude in the Americas: An Economic Analysis». The Journal of Economic History. 44 (1) : 1–26.

|4https://www.sscnet.ucla.edu/southasia/Diaspora/freed.html

|5| Ver David Graeber, p. 315 (edição francesa). Ver também Peasant movements and tribal uprisings in the 18th and 19th centuries: Deccan Uprising (1875) – HISTORY AND GENERAL STUDIES

|6| Ver o texto da lei Dekkhan Agriculturists’ Relief Act, 1879, em https://indiankanoon.org/doc/1545750/

|7| Ver Éric Toussaint, «Au Sud comme au Nord, de la grande transformation des années 1980 à la crise actuelle», publicado a 8 de Setembro de 2009, http://www.cadtm.org/Au-Sud-comme-au-Nord-de-la-grande esp: http://www.cadtm.org/La-gran-transformacion-desde-los Engl: http://www.cadtm.org/In-the-South-as-well-as-the-North

|8| O aprisionamento por dívidas é proibido pelo artigo 1º do protocolo nº 4 do acordo de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, onde são reconhecidos certos direitos e liberdades além dos que já constavam nos acordos internacionais e no primeiro protocolo da convenção, corrigida pelo protocolo nº 11. Cf.: http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_FRA.pdf

|9| Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Contr... http://www.farapej.fr/Documents/Fiches/04.pdf

|10| Bulletin n° B123 - Question et réponse écrite n° : 0599 - Législature : 50, publicado em 04/06/2002. https://www.lachambre.be/kvvcr/showpage.cfm?section=qrva&language=fr&cfm=qrvaXml.cfm?legislat=50&dossierID=50-b160-17-0599-2001200201008.xml

|11| Éric Toussaint, «2007-2017 : Les causes d’une crise financière qui a déjà 10 ans», http://www.cadtm.org/2007-2017-Les-causes-d-une-crise

|12| Éric Toussaint, «Estados Unidos: Os abusos dos bancos no setor imobiliário e as ações de despejo ilegais» 4/04/2009, http://www.cadtm.org/Estados-Unidos-Os-abusos-dos . Ver também Éric Toussaint, «Os bancos e a nova doutrina «Too Big to Jail», 9/03/2014, http://www.cadtm.org/Os-bancos-e-a-nova-doutrina-Too

|13| Ver «Les banques et l’État grecs essaient de prendre nos maisons tous les mercredis au tribunal de paix», http://www.cadtm.org/Les-banques-et-l-Etat-grecs

|14| Ver no sítio do Banco Mundial, http://datatopics.worldbank.org/debt/ids/region/SSA

|15| La Repubblica, 4/08/2008, citado por Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Éd. Amsterdam, 2011, p. 28.

|16| Lutas e dívidas dos estudantes do Quebeque: «Tant qu’on n’aura pas renversé le capitalisme, on ne pourra pas sauver l’éducation» (entrevista com Éric Martin, realizada por Maud Bailly) http://www.cadtm.org/Luttes-dettes-etudiantes-au-Quebec
Ver também Isabelle Ducas, «L’endettement étudiant, un lourd fardeau » http://affaires.lapresse.ca/finances-personnelles/train-de-vie/201312/10/01-4719551-lendettement-etudiant-un-lourd-fardeau.php
Ver no sítio oficial do Governo canadiano: «Rembourser votre dette d’étudiant» - https://www.canada.ca/fr/agence-consommation-matiere-financiere/services/rembourser-dette-etudient.htm

|17| Ver Strike Debt! The Debt Resisters’ Operations Manual http://strikedebt.org/drom/ e em particular no que respeita às dívidas dos estudantes: http://strikedebt.org/drom/chapter-four/

|18| Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Éd. Amsterdam, 2011, p. 42.

|19| Maurizio Lazzarato, p. 81.

|20| Maurizio Lazzarato, p. 85.

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional. É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011. Coordenou o trabalho da [Comissão para a Verdade sobre a dívida pública> 11511], criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015. Após a sua dissolução, anunciada a 12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento grego, a ex-Comissão prosseguiu o trabalho sob o estatuto legal de associação sem fins lucrativos.

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