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Crise nuclear japonesa e festival de mentiras

A verdade sobre a crise nuclear de Fukushima está muito longe de ser completamente conhecida, se é que algum dia será.
Explosão na central de Fukushima, Japão

Os devastadores terremoto e tsunami de 11 de Março produziram uma das maiores tragédias da sociedade industrial. Se utilizarmos, como critério principal, apenas o número de mortos, como o fazem os defensores da utilização da energia nuclear, a actual crise nuclear japonesa é destituída de relevância. Mas se, ao contrário, verificarmos as consequências sociais e económicas da tragédia, que ainda se ampliam, veremos que ultrapassa tudo quanto se foi falando ou escrevendo até ao momento.

Fukushima, junto com Chernobyl e Bhopal, na Índia, são os melhores exemplos do que ocorre num planeta onde vivem 7 mil milhões de pessoas, dominadas por um punhado de empresários capitalistas. Paralela à crise nuclear, que extrapola o Japão, foi criada a maior crise de credibilidade da história japonesa, devido ao festival de mentiras contadas pela TEPCO, a operadora da central nuclear de Fukushima, e pelo governo japonês, encabeçado, na época, pelo primeiro-ministro Naoto Kan, do Partido Democrático do Japão.

A população japonesa, composta actualmente de 127 milhões de pessoas, ficou totalmente à mercê das mentiras e irresponsabilidade da TEPCO e do governo de Kan. A verdade sobre a crise nuclear de Fukushima está muito longe de ser completamente conhecida, se é que algum dia será. Mas o certo é que apenas um grupo selecto de pessoas ligadas ao gabinete Kan, o alto escalão da TEPCO e os principais engenheiros da empresa, e, provavelmente, a casa imperial japonesa, foram os únicos que tiveram um quadro mais preciso da situação.

Mesmo Kan, apesar de ser o primeiro-ministro, reclamou que a TEPCO não lhe fornecia informações precisas nos primeiros dias de confusão da crise.

No Japão foram construídos 54 reactores nucleares, espalhados pelas principais ilhas. A construção desses reactores obedeceu, em primeiro lugar, à necessidade energética do imperialismo japonês para suprir as suas fábricas, mesmo que isso representasse riscos para a população. A amarga experiência que forçara os japoneses a se pôr de joelhos diante dos americanos após o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki não fora suficiente para impedir que o imperialismo japonês infestasse o arquipélago com as centrais nucleares. A construção das centrais correspondeu também à construção da maior mentira, a de que as centrais eram absolutamente seguras. As mentiras que se sucederam após os inúmeros acidentes nas centrais nucleares, desde que o Japão se tornara fortemente dependente dessa fonte de energia, não deixava margem a dúvidas quanto aos riscos para a população. A manutenção dessa grande mentira, à qual muitos se opuseram, foi também condição para que o Japão se mantenha até hoje como segunda potência imperialista. Se, mesmo assim, o mito de que a energia nuclear é segura sobreviveu durante as últimas décadas, o tsunami de 15 metros que invadiu a central nuclear Fukushima 1 também acabou por destruí-lo. Hoje, 80% da população japonesa opõe-se à existência das centrais nucleares e poucos se atrevem a defendê-las.

O tsunami destruiu as fontes de energia que serviam para nutrir o sistema de refrigeração dos reactores. Com isso, a refrigeração entrou em colapso. Nesse momento, tanto a TEPCO quanto o governo afirmavam que não havia risco para a população. A sucessão de factos que se seguiram provou que se tratava de uma grande mentira e, até hoje, não há como acreditar nas versões oficiais da TEPCO e do anterior governo de Naoto Kan. Ao mesmo tempo que tentavam evitar o pânico, os japoneses assistiam pela televisão às “explosões de hidrogénio” que a TEPCO e o governo asseguravam não representarem riscos. Na vida real, na região nordeste, onde ocorreu o desastre, e também na região de Kanto, onde fica Tóquio, passou a imperar o caos, com a paralisação de comboios, com a falta de energia e o pânico começando a tomar conta da população, que já não acreditava nos pronunciamentos das autoridades. A comida e a água desapareceram das prateleiras dos supermercados. Os aeroportos estavam congestionados com milhares de estrangeiros e japoneses tentando sair do país. Milhares de trabalhadores estrangeiros, brasileiros, chineses, coreanos, filipinos e de outras nacionalidades decidiram voltar definitivamente aos seus países de origem. Foram necessários vários dias de crise nuclear para que um membro do governo reconhecesse publicamente que, em certos momentos, a situação fora dramática e estava completamente fora do controlo. Foram necessários dois meses de mentira para que a TEPCO reconhecesse que o que havia ocorrido fora um derretimento (meltdown) parcial do núcleo. Afirmação questionada por alguns físicos, que argumentam que o que ocorrera de facto fora um derretimento total.

Com o colapso do sistema de refrigeração começavam as medidas desesperadas e ridículas de resfriar os reactores. A solução foi usar a água do mar, em frente à usina. Helicópteros do exército carregavam enormes bolsas de água que eram atiradas sobre a central. Assistíamos, pela televisão, à água a ser despejada e a dispersar-se no ar. Apenas algumas gotas caíam sobre o alvo. Era evidente que se tratava de um teatro para acalmar os nervos da população, para tentar mostrar que algo estava a ser feito para controlar a situação que, na realidade, estava completamente fora de controlo.

O governo japonês declarava que o acidente não era tão grave assim, caracterizando-o como sendo de nível 4 na escala INES (International Nuclear Event Scale), de 7 pontos. Tentou manter a mentira durante vários dias, mas a comunidade cientifica internacional questionava essa caracterização, até que Naoto Kan, tendo que sucumbir aos factos, anunciava que o acidente era de nível 7, equiparando-se com Chernobyl. A grande mentira, contada ao mundo inteiro, como se todos fossemos idiotas, caíra definitivamente por terra. Para nós que vivemos aqui, já não havia como acreditar em mais nada. Enquanto o governo japonês apresentava relatórios mais verídicos, a IAEA (International Atomic Energy Agency), as versões veiculadas a nível interno eram mais suaves, para dizer o mínimo.

Se alguém achava que Fukushima 1 poderia ser recuperada, essa miragem acabou com as toneladas de água que foram bombeadas para resfriar os reactores A utilização da água marinha inutilizou completamente a central e gerou a enorme quantidade de lixo atómico que ninguém sabe onde enfiar. No auge da crise e do desespero, a TEPCO lançou no Pacífico uma grande quantidade de água contaminada pela radiação, deixando iradas as populações de vários países, como a China e a Coreia. Em certos momentos, a quantidade de água contaminada superou as 120 mil toneladas e a TEPCO teve de instalar um sistema para descontaminá-la e poder utiliza-la, mesmo contaminada, no resfriamento dos reactores.

O facto, objectivo, é que a tragédia de Fukushima espalhou uma imensa quantidade de radioactividade. Para se ter uma ideia das proporções da tragédia, a quantidade de césio emitida por Fukushima é, segundo a agência de segurança nuclear, equivalente a 168 Hiroshimas. A contaminação radioactiva viajou milhares de quilómetros. Recentemente, cientistas americanos confirmaram ter encontrado partículas radioactivas provenientes de Fukushima na costa oeste dos EUA. Obviamente viajou também pelo interior do Japão, mas ninguém sabe ao certo até onde, já que não existem pesquisas a respeito.

A situação é tão patética que a população da província de Fukushima se opõe à manutenção desse lixo atómico na província, mas Kan, dias antes de renunciar, teve de se enfrentar a essa oposição, afirmando que não há onde levá-lo. Surgiram sugestões absurdas, como levar para a Mongólia, mas todos sabemos que isso não é viável.

Não sabemos a quantidade exacta, mas o jornal Yomiuri divulgou em 30 de Julho que havia cerca de 120 mil toneladas de cinzas contaminadas ou suspeitas de contaminação armazenadas em centrais de tratamento de água e esgoto em Tóquio e 13 províncias do nordeste e na região de Kanto. Os entulhos resultantes da devastação pelo tsunami também foram contaminados com a radiação, tornando-se mais um problema grave no meio de outros igualmente graves. O que fazer com tanto lixo atómico é uma pergunta a que o governo japonês não responde.

A TEPCO afirmou no início da crise que não fora capaz de prever um tsunami daquela envergadura. Mas o governo japonês afirmou no final de Agosto que a TEPCO, em 2008, já havia previsto a possibilidade de que um tsunami de 15 metros pudesse atingir Fukushima 1, caso ocorresse um grande terramoto. Esses estudos foram encaminhados à agência de segurança nuclear, em 2009. Como sabemos, tal previsão não foi acompanhada de nenhuma medida preventiva e, somado a isso, vimos também a negligência do governo, que se manteve calado. O resultado foi a geração da actual crise.

Na esteira das mentiras da TEPCO surgiu um novo escândalo envolvendo duas grandes empresas de energia: a Chubu, do Japão central, e a Kyushu, do sul. A Kyushu orientara os seus funcionários para que emitissem opiniões favoráveis manipulando a opinião pública para a reactivação da sua central em Genkai, na província de Saga. O Chubu, por sua vez, tinha orientado os seus funcionários a participar de um simpósio, em 2007, manifestando posições favoráveis para impedir que o simpósio tomasse uma posição unânime contra um projecto nuclear na sua central de Hamaoka. Esse escândalo evidenciou ainda mais o festival de mentiras do sector de energia nuclear japonês.

Sofrimento irreparável

O que faria se fosse obrigado a evacuar a sua casa por seis meses? E, se, após esse período, o primeiro-ministro do seu país anunciasse que poderá levar anos (quantos?) e que, dependendo da sua idade, como é o caso de muitos, nunca mais poderá voltar a habitar o seu lar, doce lar?

Essa é a situação de milhares de moradores das localidades de Okumamachi, Futabamachi, Tomiokamachi, Iitatemura e Minami Soma. Com excepção de Minami Soma e Iitatemura, essas localidades encontram-se no perímetro de 20km estipulado como área de entrada proibida pelo governo japonês. Pesquisas recentes demonstram que 34 locais têm um nível de contaminação radioactiva de césio equivalente ao estipulado para evacuação obrigatória em Chernobyl. O drama da população local é muito superior ao que as agências internacionais de notícias têm divulgado. Mesmo depois de o governo ter decretado a zona de entrada proibida, várias famílias recusaram-se a sair. Uma dona de casa, entrevistada, comentou: “Se permaneço, a minha velha mãe que se encontra enferma e na cama continuará a viver. Mas quem me garante que se eu decidir evacuar ela não irá morrer no caminho?”

No final de Agosto, o governo autorizou a visita, por algumas horas, a 279 pessoas de Futabamachi e 857 de Okumamachi, localidades no perímetro de 3 km de Fukushima 1. Uma senhora de 68 anos, de Okumamachi, comentou: “Fui buscar as cinzas do meu marido.”

Semanas atrás, o Yomiuri divulgou que havia cerca de 2 mil crianças que continuavam a residir na área de entrada proibida. Podemos imaginar as consequências futuras na vida delas. Na área mais próxima à central, a população não poderá regressar às suas moradias durante várias décadas.

Os critérios utilizados para designar a evacuação também são passíveis de dúvidas. O melhor exemplo das disparidades é o que ocorreu com a família de Morio Onami. A casa do seu filho, situada a dois metros da sua, foi designada para evacuação, o mesmo não ocorreu com a casa onde ele vive. Essa aberração impede que Morio Onami possa solicitar ajuda financeira para aliviar os gastos de sua evacuação “voluntária”.

Segundo a associação de jardins da infância da província de Fukushima, mais de duas mil crianças abandonaram as escolas depois do terremoto. Alguns pais mais receosos decidiram enviá-las para escolas fora da província, ou simplesmente deixaram de enviá-las, com receio da radiação. Essa situação forçou muitas famílias a separarem-se para proteger as crianças, com os pais permanecendo na província por causa dos empregos, mas enviando as mulheres e crianças para outras localidades, nas casas de amigos e parentes.

Serão necessárias varias décadas para encerrar a crise

No início de Julho, foi anunciado que o tempo para iniciar a remoção do combustível dos reactores será de pelo menos dez anos, podendo levar o dobro, ou seja, vinte anos. A demolição dos reactores só pode ocorrer quando os níveis de radiação baixarem para um patamar seguro. Serão necessárias varias décadas para que seja possível. Foram necessários nada menos que cinco meses para que o então primeiro-ministro declarasse publicamente que a superação da crise poderia levar 3, 5, 10 anos ou mesmo décadas. Em Abril, a TEPCO elaborou um plano que afirmava que a situação estará sob controlo em Janeiro próximo. Meia verdade? Grande mentira? O plano foi rectificado em Julho, com a TEPCO a afirmar ter alcançado os objectivos iniciais dos primeiros meses. O principal objectivo do plano é manter os reactores resfriados em temperatura inferior a 100 graus centígrados. Mas isso, na prática, constitui apenas a atenuação do problema, o defunto é mantido no frigorífico, mas não é possível enterrá-lo.

Desde o início da crise, os trabalhadores envolvidos nos trabalhos relacionados têm sido submetidos a situações extremas. Segundo ultimas aferições em alguns pontos da central, o nível de radiação é tão elevado que não permite a presença de trabalhadores, nesses locais – a exposição por mais de 4 segundos poderia ser fatal.

A crise nuclear japonesa não diz respeito apenas a Fukushima 1, mas a todos os 54 reactores existentes no arquipélago. Alguns estão em funcionamento, mas a maioria está sob paralisação temporária. Segundo os planos do governo, o reinício do funcionamento desses reactores dependerá de testes para avaliar o stress do material e equipamentos das centrais, algumas em utilização há mais de 40 anos, como é o caso de dois reactores na província de Fukui. A aprovação será feita a partir de dois testes. Os que passarem no primeiro serão submetidos a um segundo teste. Mas, segundo a legislação actual, será necessária a aprovação dos governos locais, que terão de enfrentar a oposição da população para poder reactivá-los, o que não será uma tarefa fáci,l já que a maioria se convenceu do perigo que representa a reactivação dos mesmos. Os critérios que serão utilizados nesses testes também são alvo de desconfiança, dado o descrédito em que as autoridades competentes caíram depois da crise nuclear.

Até ao momento, o governo não comunicou nenhum plano claro de descontaminação de toda a área afectada, o que tem levado os governos e municipalidades a tomarem a iniciativa com os seus próprios recursos, como foi o caso de Minami Soma, que forjou um acordo com a Universidade de Tóquio. No plano individual, as pessoas mais preocupadas com a situação foram forçadas a comprar medidores de radiação e efectivar medições por conta própria. O problema enfrentado por essas pessoas é que o resultado da medição com esses instrumentos mostra uma grande margem de diferença entre os medidores de uma marca ou outra, afectando objectivamente a confiabilidade.

Na actual situação, só nos resta ter paciência e torcer para que uma nova grande catástrofe ocorra. Mas a crise de Fukushima 1 fez ressuscitar o cambaleante movimento anti-nuclear japonês. Milhares de jovens tomaram as ruas nos últimos meses, fazendo surgir uma nova geração de lutadores no pais.

Este é o segundo de uma série de artigos sobre o tema. O primeiro foi Japão: seis meses depois de Fukushima

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