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Como o Banco de Portugal acumula lucros sem contribuir para as contas públicas

José Gusmão entrevista o economista Ricardo Cabral sobre a política de provisões do Banco de Portugal, que este ano impediu o Estado de receber centenas de milhões de euros em impostos e dividendos.
José Gusmão entrevista Ricardo Cabral

Esta entrevista foi feita no oitavo programa Mais Esquerda, que pode ser visto aqui (e a versão integral aqui). Em baixo, pode ler e ver a entrevista na íntegra.

Uma das notícias que surgiu a propósito do Orçamento do Estado para 2017 é um aumento significativo nos dividendos e no IRC pago pelo Banco de Portugal ao Estado e o apoio que isso vai dar ao esforço de consolidação orçamental em 2017. De onde vem este dinheiro e qual é a explicação para este aumento aparentemente tão súbito?

Essencialmente o dinheiro resulta da estratégia de provisões do Banco de Portugal e do programa de alargado da compra de ativos, ou seja, o programa de expansão quantitativa do BCE. Esse programa tem adquirido dívida pública dos países membros da zona euro. Em Portugal, o Banco de Portugal no final de 2015 tinha adquirido 10 mil milhões de euros de dívida pública portuguesa, mais cerca de mil milhões de euros de dívida do setor privado, essa dívida rende juros, esses juros resultam em lucros para o Banco de Portugal. Isso foi em 2015, em 2016 o banco já adquiriu mais dívida e é esse efeito que estamos a falar neste momento.

Isso já tinha acontecido em 2015, e em 2016 isso não aconteceu. Escreveste um texto em que explicavas que o Banco de Portugal tinha constituído provisões e que os resultados positivos associados à compra desses títulos não se verificou em 2016, e falava-se também em valores consideráveis. Em primeiro lugar, o que são provisões do Banco de Portugal e porque é que essas provisões afetam os resultados do Banco de Portugal, e portanto os dividendos que são pagos ao Estado?

As provisões de que estamos a falar, nas contas de qualquer entidade e, em particular, nas contas do Banco de Portugal existem critérios diferentes e regras diferentes sobre como contabilizar diferentes itens. Um desses itens no plano de contas do Banco de Portugal chama-se “provisões para riscos gerais”. Essas provisões para riscos gerais são muito pouco específicas e não necessitam de qualquer fundamento. O plano de contas, tanto quanto é conhecido, permite a constituição de provisões até 5% dos títulos de dívidas. O que é que isso significa? Essencialmente é uma forma de precaver um futuro incerto, guardando lucros para o que der e vier.

Uma margem de segurança…

Sim, mas esta figura das provisões existia também, não com este termo “provisões para riscos gerais”, mas existia no passado, no setor privado, também este tipo de provisões. Essencialmente era utilizado para suavizar a variação dos lucros de ano para ano. As empresas poderiam constituir este tipo de provisões e diziam “eu preciso destas provisões para o futuro” e, ao constituir estas provisões, que eram consideradas como custo, não iam para os lucros e não pagavam impostos sobre os lucros. O plano de contas do setor privado foi alterado e basicamente qualquer provisão que é constituída tem que estar documentada, tem que haver um fundamento. É assim que se passa no setor privado.

E como é que se passou no Banco de Portugal?

No Banco de Portugal, existe um plano de contas que é proposto pelo próprio Banco de Portugal  e que é aprovado pelo ministro das Finanças, de acordo com a Lei Orgânica do Banco de Portugal. Parece-me que não deveria ser assim, o plano de contas não deveria ser preparado pela própria entidade que depois apresenta, está obrigada a apresentar essas contas, deveria ser um grémio mais ou menos independente da própria entidade. Por exemplo, eu não consigo ter acesso ao plano de contas mais recente do Banco de Portugal. Acho que o plano de contas deveria ser público, mas esse plano de contas dá grande discricionariedade e permite essa figura dessas provisões, desde que devidamente fundamentadas, embora eu não veja qualquer fundamentação no relatório do Banco de Portugal em relação à constituição destas provisões.

Explicando de forma resumida: provisões são uma forma de não declarar lucros, é como pôr dinheiro à parte, guardar um cofrezinho de reserva à parte. Eu estou a explicar se calhar de uma forma um pouco injusta, mas é uma forma de guardar lucros para um futuro incerto que tem dois efeitos: por um lado não se paga impostos e por outro lado, dado que o Banco de Portugal está obrigado por lei a distribuir 80% dos seus lucros líquidos como dividendos, também evitam distribuir dividentos. O Banco de Portugal, de acordo com as regras atuais, pode constituir essas provisões para riscos gerais até 5% do valor desses ativos e pode guardar esses lucros, e ir acumulando lucros ao longo de anos e não os distribuir ao Estado. Não contribui para as contas públicas, nesse sentido, se as provisões forem exageradas. E acontece que essas provisões no Banco de Portugal são cerca de 4 mil milhões, num país que sabemos que tem as dificuldades que tem. Repare-se bem que outros bancos centrais não fazem isso.

As provisões não estão diretamente relacionadas com os ativos?

Não, são para riscos gerais. Quando as constituem podem ter em conta os riscos da dívida e é isso que eles citam no relatório do Banco de Portugal, mas são provisões para riscos gerais que tipicamente são dependentes, podem ser constituídas até um valor máximo, até 5% do valor da dívida, mas não é possível relacionar as provisões. Ou seja, as provisões, em teoria, também podem ser diminuídas. o Banco Central da Irlanda, por exemplo, diminuiu o nível geral de provisões em relação ao passado. Apresentou provisões negativas.

Essa é uma questão interessante, como é que outros bancos centrais nacionais que estão ativos no âmbito do mesmo programa de compra de títulos estão a gerir esta questão das provisões? O comportamento do Banco de Portugal é representativo do comportamento médio dos outros bancos centrais nacionais comparáveis, ou há uma espécie de excesso de zelo no que diz respeito a esta questão das provisões?

Essencialmente existem as orientações do Banco Central Europeu para a preparação das contas dos bancos centrais nacionais. Existe uma coisa, uma ferramenta que é importante nesse sentido, que é que o Banco Central Europeu faz uma revisão anual de todos os ativos e procura identificar quais são os ativos em que os bancos centrais nacionais estão obrigados a constituir imparidade, ou seja, assumir perdas nesses ativos. Isso ocorre, se não estou em erro, em dezembro de cada ano e o que acontece é que o Banco Central Europeu não obrigou nem a constituir imparidades na dívida pública portuguesa, nem na dívida pública grega, nem na dívida pública de qualquer dos países membros. Ao não obrigar a constituir imparidades significa que não existe nenhuma obrigação a nível do sistema para constituir, ou impedir provisões sobre esses ativos. 

Essencialmente, a constituição de provisões para riscos gerais é deixada ao critério de cada banco central nacional. Portanto, cada banco central nacional define a sua própria política e existe liberdade praticamente plena para constituir o nível de provisões que entendam adequado, desde que devidamente fundamentado. Os bancos centrais nacionais da zona euro fizeram coisas diferentes, portanto o Banco Central de Portugal, o Banco de Portugal, é o banco que provavelmente constituiu – eu não consegui analisar todos – mais provisões para riscos gerais, proporcionalmente ao montante das compras e proporcionalmente aos seus ativos.

E pelo que disseste, a justificação não é muito clara nos documentos do Banco de Portugal.

Nada clara. O relatório que é mais claro e mais direto nessa matéria é o do Banco Central da Irlanda, que explica detalhadamente quais são os critérios e quais são os instrumentos que são utilizados para constituir essas provisões e que, aliás, não constitui nenhumas provisões para os riscos gerais para a dívida pública da Irlanda, que foi adquirida no âmbito desse programa.

Ainda sobre essa questão dos critérios, podemos pensar que o facto de em 2016 a constituição das provisões ter retirado mais de 300 milhões de euros de receitas para o Estado e este ano haver um contributo positivo superior a 400 milhões, que isso quer dizer que houve uma inflexão na atitude de Portugal em relação a este programa, ou simplesmente o Banco de Portugal não agravou a sua posição a esse nível?

O Banco de Portugal adquiriu mais dívida este ano, portanto eu penso que chegará ao fim de 2016 com mais de 20 mil milhões de euros de dívida pública, ou seja, o ano passado terminou o ano com cerca de 10 mil milhões e este ano, dependendo das compras que são feitas, houve meses em que o Banco de Portugal e o BCE não conseguiram comprar muita dívida pública, penso que ficará por volta dos 21, 22 mil milhões. Se tivessem mantido o ritmo, chegariam aos 27, mas não me parece que tenham mantido o ritmo, ou que tenham conseguido manter o ritmo, portanto, é provável que fiquem pelos 21, 22 mil milhões de euros de dívida pública. Agora, parece-me que o Banco de Portugal, a comprometer-se a distribuir dividendos de 450 milhões de euros, provavelmente constituirá à mesma provisões significativas, mas provavelmente serão menores.

Disseste que o ministro das Finanças tem que aprovar o plano de contas do Banco de Portugal, isso dá ao governo alguma margem de intervenção nessa política do Banco de Portugal?

O ministro das Finanças tem muitos poderes, tem poder para, por exemplo, para recusar o relatório de contas do Banco de Portugal, segundo o meu entendimento. Pelo menos, parece-me que isso seria lógico.

Por considerar que as provisões não estão corretamente fundamentadas, por exemplo?

Se calhar. Parece-me que seria um argumento. Mas o governo tem o poder da lei, pode alterar a Lei Orgância. Julgo que só se consegue alterar o plano de contas por proposta do Banco de Portugal, nos termos da Lei Orgânica, mas se o governo pode alterar a Lei Orgânica pode, em última instância, alterar esse tipo de procedimentos. Não deveria ser o Banco de Portugal a propor o seu próprio plano de contas, nenhuma instituição propõe o seu próprio Plano de Contas, a forma como reporta os seus resultados deve ser de fora, deve ser uma entidade independente, com pareceres de auditores, a propor um plano de contas pelos qual uma instituição se rege. Evidentemente, é ouvida a instituições.

É natural que qualquer instituição pública tenha meios para assegurar o seu futuro e ser gerida de forma a ter recursos para desenvolver as suas atividades no futuro. As instituições são vivas, pensam no futuro, pensam em ter recursos, por exemplo, para conseguir ter mais um edifício, ou iniciar uma nova atividade, ou contratar mais pessoas para fazer outro tipo de atividades, ou outro tipo de atividades, é natural. Uma empresa privada, ou uma instituição pública, são instituições vivas, as pessoas que estão lá procuram fazer o melhor e procuram desenvolver a sua atividade. Quando estamos no Estado, contudo, e em qualquer entidade privada, há um limite, que é o limite de quem controla essa instituição, que diz, “muito bem, eu concordo com essa atividade, eu dou-te os recursos, ou diponibilizo os recursos, ou não”. E, no caso do Estado, parece-me que esse regime de provisões é demasiado generoso, ou seja, a estratégia de provisões tem que ser mais espartana, porque o país é que tem de saber onde vai aplicar os seus fundos. Ou seja, 480 milhões de euros de provisões é um montante muito grande comparado, por exemplo, com orçamentos de ministérios. É importante que seja uma decisão que caiba, não ao Banco de Portugal, mas aos seus acionistas, que decidem qual o nível de recursos que estará disponível para a instituição Banco de Portugal, como decidem qual o nível de recursos que estará disponível para o ministério da Saúde. É assim que as coisas funcionam, com a aprovação do parlamento.

Até porque estão ligados, porque se o nível de provisões fosse mais reduzido era mais receita para o Estado, o que permitia conduzir outras políticas económicas, financiar o Serviço Nacional de Saúde…

Sim, basicamente as provisões permitem guardar recursos financeiros dentro da instituição, que não são distribuidos ao Estado, e portanto o Estado deixa de ter o poder da decisão de como alocar esses recursos. E, portanto, provisões para riscos gerais, provisões que não são muito específicas e documentadas, não me parece que se enquadrem no funcionamento, quer de instituições privadas, quer de instituições públicas. 

É verdade, ou não, que o nível de provisões que o Banco de Portugal está a constituir, de alguma forma limita os impactos positivos que o programa de quantitative easing podia ter na economia portuguesa e na evolução das nossas finanças públicas?

Sim, este ano a consolidação orçamental para 2017 deve ser 0.8-0.9% do PIB, ou pelo menos é isso que o governo propõe que seja, e o efeito da alteração dos dividendos do Banco de Portugal deve contribuir para o esforço de consolidação orçamental em cerca de um quarto, portanto, cerca de um quarto do esforço de consolidação orçamental vem do Banco de Portugal. E é muito positivo, e, aliás, afeta o saldo primário, que é uma medida que é sempre importante do ponto de vista de negociações e do ponto de vista de mercados, porque são, digamos, rendimento de capital, e, portanto, evidentemente, se estamos “obrigados” a cumprir regras orçamentais face aos nossos parceiros europeus, o facto de existirem esses recursos que o Banco de Portugal contribui para o esforço de consolidação orçamental, significa que há muitos outros cortes de despesa, muitos outros aumentos de impostos que não é necessário fazer. Portanto, sim, parece-me que é importante essa alteração.

Escreveste que este programa e as regras que foram introduzidas em 2015 constituem, na prática, uma monetização de dívida pública, queres explicar o que é que isso quer dizer?

Certo. A monetização de dívida pública significa que o Estado emite dívida pública e esta dívida pública é comprada pelo banco central. O banco central imprime papel moeda, ou imprime moeda em forma electrónica e compra dívida pública. Isto é a ideia de monetização direta da dívida pública. Na zona euro, o Tratado Europeu proíbe a monetização da dívida pública, ou seja, a compra da dívida pública no mercado primário pelo Banco Central Europeu e está subentendido, o espírito do tratado é que a modelização da dívida é proibida.

Por isso é que um Presidente do Banco Central Europeu, Mário Draghi, se deu ao trabalho imenso de nunca falar sobre o que é que acontece aos rendimentos deste programa alargado de compra da dívida pública, ele fala nos riscos do programa, não fala nos benefícios do programa. Porquê? Eu também compreendo a posição de Draghi, se está escrito no tratado, eu não vou dizer que estou a violar o tratado ao fazer um programa destes que está a gerar receitas para o Estado, mas o facto é que está a gerar receitas. Por exemplo, o Banco Central da Irlanda distribuiu este ano 3 mil milhões de euros de dividendos, o Banco Central da Grécia 1200 milhões de euros de dividendos, o Banco Central da Espanha também um número muito grande e também a mesma coisa para a Alemanha. Portanto, estes programas estão a ter um impacto nas contas públicas dos países membros da zona euro. 

Infelizmente, menos em Portugal.

Menos em Portugal. A ideia é que esses benefícios passem diretamente para as contas públicas, porque, em certa medida, no curto prazo, contribui para uma ligeira redução do peso da dívida. Os programas são relativamente grandes, a compra de dívida pública que se espera que o Banco Central Europeu venha a realizar até março de 2017, e fala-se agora se o programa vai ser alterado, se vai ser continuado de forma mais pequena ou não, mas, até março, se se tivesse mantido o ritmo que estava, o banco central teria comprado 18% da dívida pública portuguesa, o que é um montante muito significativo. Só que, porque o programa não é permanente e em princípio tem a maturidade, ou dura um tempo que é igual à maturidade da dívida pública que for adquirida nesse programa, cerca de dez anos, então o efeito não é que desaparece 18% da dívida pública portuguesa, desaparece menos. Penso que esse efeito será de 2-3% do PIB, dependendo das premissas do programa. Portanto, sim, 18% seria um efeito muito grande do programa de compras públicas, se essa dívida desaparecesse toda, porque só desaparece durante 10 anos, tem um efeito pequenino, de 2-3%. Ora, se a gente tem uma dívida de 130% do PIB, 2-3% não faz diferença nenhuma. Apenas estamos numa trajetória exponencial de dívida, metade é sustentável e está a crescer, mais rápido, em média, do que a nossa capacidade de pagar essa dívida, os 2-3% não fazem diferença nenhuma. Os 18% já faziam alguma diferença, mas mesmo assim não seria o suficiente, estado o peso elevado da nossa dívida.

E achas que a criação deste precedente possa mudar um pouco a perspetiva das instituições europeias no futuro em relação à questão da monetização da dívida de uma forma mais assumida?

Repara bem, se calhar o maior precedente foi com Trichet e com o Banco Central da Irlanda. O Banco Central da Irlanda adquiriu 30 mil milhões de euros de dívida pública da Irlanda diretamente e o governador do Banco Central da Irlanda disse “não, não, isto não é monetização da dívida”, portanto, é um pouco como a história do Rei vai nu. Os altos responsáveis dizem “não, isto não é monetização de dívida”, e interpretam isso como não sendo, e está o ponto acabado. É como os americanos usam muito esta expressão, de vamos para a guerra e depois um político diz, para acabar com a guerra, “então, vocês declarem vitória e venham-se embora”. Portanto, é esta ideia. Declaram que aquilo não era monetização de dívida, mas na realidade, era.

Draghi teve muito mais cuidado e foi muito mais inteligente na forma como fez este programa, fê-lo a procurar envolver os pares todos, apesar de ter tido a oposição da Alemanha, mas o mandato de Draghi termina em 2019, a seguir é muito provável que venha alguém com ligações, ou com a visão dos alemães, e parece-me que o programa de monetização de dívida não terá qualquer chance a partir dessa data. Eu penso que este programa é temporário.

Vai mesmo ser temporário.

Sim, mas o temporário depende das pessoas que lá estão. Eles são um banco central independente, eu estou a tentar adivinhar o que as pessoas farão, porque eles podem fazer o que bem entenderem nessa matéria, como, aliás Draghi fez, e o atual Conselho do BCE fez. 

 

 

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