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Che: a viagem de uma imagem

A história da fotografia de Alberto Korda que marcou o século e foi convertida em ícone político e até comercial. Por Alberto Bonnet.
Campanha da Mercedes Benz em 2012.

CHE: A VIAGEM DE UMA IMAGEM

 
Alberto Bonnet *

Na origem, está o acaso. A ocasião foi uma homenagem às vítimas de um atentado no Cemitério Colón, em Havana, realizado a 5 de março de 1960. O facto foi que Alberto Díaz Gutiérrez, ou Alberto Korda, com uma Leika M2 na mão, tirou sucessivas fotografias a Fidel Castro, Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir e, já que aparecera fugazmente no cenário, aproveitou também para tirar duas ao então ministro da industria da revolução. O mais célebre retrato de Ernesto Che Guevara iniciava assim a sua viagem. Mas o acaso geralmente fica. Revolución publicou várias dessas fotografias na sua notícia sobre a homenagem, mas não este retrato, que Korda pendurou na parede do seu quarto. Um ano depois, Revolución publicou-o para anunciar uma conferência de Che – e não uma, mas duas vezes, pois a conferência teve de ser reprogramada por causa da invasão de Baía dos Porcos. Mas continuou a ser mais uma fotografia, cuja primeira cópia continuou pendurada durante mais seis anos na parede de Korda.

A sua viagem começou a delinear-se nos começos de 1967. Foi quando Korda entregou gratuitamente a fotografia a Gian Giacomo Feltrinelli, o célebre editor de esquerda italiano, para que ilustrasse a capa da primeira edição do Diário de Che na Bolivia. A intenção do editor era militante: publicar o diário (e numerosas copias da fotografia por separado) para difundir a imagem de Che e ajudar a protegê-lo da ameaça que o espreitava cada vez mais na selva boliviana. Efetivamente, a foto parece ter começado a circular entre os militantes de esquerda italianos. Mas o resultado, em definitivo, foi muito diferente: a fotografia não evitou, nem podia evitar, o assassinato de Che, em outubro, em La Higuera; mas este assassinato começou a converter essa fotografia numa imagem por excelência da luta revolucionária. Mas Feltrinelli usou copyright: a fotografia começava a converter-se em imagem revolucionária e, por sua vez, em mercadoria. Ambas as coisas nunca estiveram dissociadas.
A arte interveio seguidamente nesta viagem. E, nos dois sentidos. Já, em 1967, o artista irlandés Jim Kirkpatrick, também com fins militantes e sem copyright algum, estilizou as caraterísticas de Che convertendo essa fotografia na imagem que desde então iria ser utilizada por tantas forças políticas, mas também por muitas marcas comerciais. A imagem de Che já circulava na Irlanda, Espanha, França, Holanda. E apenas uns meses depois, em 1968, Peter Meyer comissariou uma exposição sobre a revolução cubana, Viva Che!, que incluía a imagem de Kirkpatrick, no novíssimo London Arts Lab. Assim, desde o inicio, a arte interviria permanentemente no itinerário da imagem de Che. E, desde logo, nos dois sentidos, porque a tensão entre a crítica e a mercantilização atravessava a arte como nunca dantes. Depois viria a série de Che multicolores de Andy Warhol (1968), Che na capa do álbum Bombtrack dos Rage Against the Machine (1992); com Madonna na capa de American Life (2003), Che Guevara na capa da revista Sleazenation (2001), e, não podemos esquecer, Victoria Ocampo disfarçada de Che com Roberto Jacoby: “Hasta la victoria ou campo!” (2008). A Universidade da Califórnia organizou, em 2005, uma exposição inteira dedicada “à fotografia mais famosa do mundo e um símbolo do século XX”.(1)

Naturalmente, ao longo desta viagem, a imagem de Che foi-se mercantilizando e esvaziando do seu significado original. Dois casos particularmente extremos foram o uso da mesma nas campanhas publicitárias da Smirnoff (2000) e da Mercedes Benz (2012). Ambas originaram escândalo. Quanto à primeira, Korda iniciou e ganhou um processo contra a empresa por usar a foto sem a sua autorização. Quanto à segunda, a comunidade cubana de Miami agitou-se e, inclusivamente, Félix Rodriguez, uma dos esbirros que a CIA contratou para ajudar o exército boliviano a capturar Che, afirmou indignado que já não iria trocar o seu Accura por um novo Mercedes. De facto, em qualquer dos casos, duas grandes multinacionais valeram-se da imagem de Che para as suas campanhas – e acrescentamos: uma tão cúmplice do nazismo como a outra do czarismo. Não só as utilizações mercantis da imagem de Che esvaziaram o seu significado original, como também muitas utilizações políticas.

Algumas vezes, utilizações bastante perversas, como sucedeu nas mãos de muitos partidos comunistas latino-americanos. Muitas outras vezes, utilizações honestas, como sucede com tantas e tão diversas organizações políticas e sociais que esgrimem a imagem de Che como emblema da sua rebeldia, mas sem que a sua orientação ideológica tenha relação alguma com as ideias de Che. Ora bem, esse significado original da imagem de Che já não existe e caso o pudéssemos recuperar através dalguma operação exegética, o resultado sería, possivelmente, que a imagem de Che deixaria de nos servir. Que faríamos com a imagem de Che, por exemplo, se fosse completamente inseparável das especificidades da prática revolucionária, que desenvolveu como guerrilheiro na Sierra Maestra, ou de quem tentou teorizar para toda a América Latina, em Cuba: caso excepcional ou vanguarda na luta contra o colonialismo? E outros escritos?

Então: que resta desta imagem, depois da sua viagem? A fotografía foi tirada de baixo para cima e a figura de Che recorta-se sobre um fundo luminoso. Che aparece, olhando por cima e para além da câmara, como que a interrogar o horizonte ou o futuro. A foto de Korda é, em boa medida, a foto de um olhar. E este olhar combina a dureza com alguma doçura. Korda, numa reportagem, recordou que efetivamente Che estava enojado e triste com o atentado. Alguns assinalaram parecenças com as estátuas do realismo socialista e outros com a imagem de Cristo. E há algo de ambas as coisas, na rigidez das feições, na tristeza dos olhos e, talvez, na própria personalidade de Che. A foto foi batizada de Guerrillero Heroico. Penso que é um nome desafortunado: a função política do culto ao heroísmo dentro da prática revolucionária é muito ambígua e confesso que prefiro, à figura do herói, a figura de homens e mulheres comuns e vulgares do zapatismo. Mas, em qualquer caso, com este nome e com estas caraterísiticas, apesar de todas as utilizações mercantis e dalgumas utilizações políticas que dela se aproveitaram, a imagem de Che continua vigente como uma imagem de rebeldia. Continua a ser imagem de rebeldia para eles. O Comité Olímpico Internacional proibiu explicitamente a entrada com imagens de Che nos eventos desportivos de Londres-2012. E continua a ser uma imagem da rebeldia para nós.
 


Notas:
(1) - Expressão usada em catálogos e outros materiais relacionados com a referida exposição itinerante comissariada por Trisha Ziff.

Alberto Bonnet – Docente e investigador em Ciências Sociais. Publicado em Viento Sur. Tradução: António José André.

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