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Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas

Publicamos aqui a conclusão e o epílogo do artigo de Éric Toussaint, que fomos divulgando em várias partes. No final o autor resume: “é possível repudiar ou suspender unilateralmente o pagamento da dívida e relançar a economia”.
“É possível repudiar ou suspender unilateralmente o pagamento da dívida e relançar a economia”, conclui Eric Toussaint no final deste trabalho
“É possível repudiar ou suspender unilateralmente o pagamento da dívida e relançar a economia”, conclui Eric Toussaint no final deste trabalho

Este artigo de Éric Toussaint, Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas, está publicado no esquerda.net em 13 partes:

Parte 1 : Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917
Parte 2 : Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas (link is external)
Parte 3 : A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz
Parte 4 : A revolução russa, o direito dos povos à autodeterminação e o repúdio das dívidas
Parte 5 : A imprensa francesa a soldo do czar
Parte 6 : Os títulos de dívida russos após o repúdio
Parte 7 : O jogo diplomático à volta do repúdio das dívidas russas
Parte 8 : Em 1922, nova tentativa de submissão dos sovietes às potências credoras
Parte 9: O contra-ataque soviético: o Tratado de Rapallo de 1922
Parte 10. Em Génova (1922), as contra-propostas soviéticas face às imposições das potências credoras
Parte 11. Dívida: Lloyd George versus soviéticos
Parte 12. A reafirmação do repúdio das dívidas é bem sucedida
Parte 13: Conclusão e Epílogo

Conclusão:

Este estudo centrou-se no repúdio das dívidas pelo Governo soviético. Nele se mostra que essa decisão remonta a um compromisso assumido aquando da revolução de 1905. Foi analisado o contexto internacional: os tratados de paz, a guerra civil, o bloqueio, a Conferência de Génova e os numerosos acordos de empréstimo que se seguiram, apesar de ser mantido o repúdio das dívidas passadas.

Por falta de espaço, não abordei a evolução do regime soviético: o estrangulamento progressivo da crítica, a degeneração burocrática e autoritária do regime,1 as políticas catastróficas no âmbito agrícola (nomeadamente a coletivização à força feita por Estaline) e no âmbito industrial, a imposição por Estaline, nos anos 1930, de um regime de terror.2

Esta evolução trágica mostra mais uma vez que não basta repudiar as dívidas odiosas para alcançar a solução dos múltiplos problemas sociais. Quanto a isso não restam dúvidas. Para que o repúdio das dívidas seja realmente útil, é necessário que faça parte de um conjunto coerente de medidas políticas, económicas, culturais e sociais que permitam fazer a transição para uma sociedade livre das diversas formas de opressão que sofre há milénios.

Reciprocamente, é muito difícil tentar começar tal transição e ao mesmo tempo querer pagar as dívidas odiosas herdadas do passado. Exemplos históricos não faltam. Veja-se o caso da Grécia: a submissão aos ditames dos credores desde 2010 e os efeitos terríveis da capitulação em julho de 2015, consumada por um governo que pretendia prosseguir o reembolso da dívida a fim de obter a sua redução.

Epílogo:

Em 1997, seis anos após a dissolução da URSS, Boris Yeltsin assinou um acordo com Paris para pôr termo ao contencioso sobre os títulos russos. Os 400 milhões de dólares pagos pela Federação da Rússia à França em 1997-2000 representam apenas cerca de 1% dos montantes exigidos à Rússia Soviética pelos porta-vozes dos credores franceses representados pelo Estado.3 Há ainda a sublinhar que o acordo entre a Rússia e o Reino Unido, de 15/julho/1986, permitiu a indemnização dos portadores britânicos à razão de 1,6 % do valor atualizado dos títulos.

Estas taxas de indemnização são ridículas e mostram mais uma vez que um país pode repudiar a sua dívida.

Em agosto de 1998, por causa da crise asiática e dos efeitos da restauração capitalista, a Rússia suspendeu unilateralmente o pagamento da dívida durante seis semanas. A dívida pública externa elevava-se a 95 mil milhões de dólares, devidos a bancos privados estrangeiros (30 mil milhões devidos aos bancos alemães e 7 mil milhões aos bancos franceses, entre os quais o Crédit Lyonnais) e o resto era devido sobretudo ao Clube de Paris e ao FMI. A suspensão total do pagamento, seguida duma suspensão parcial nos anos seguintes, levou os vários credores a aceitarem uma redução que oscilou entre os 30 e os 70 %, consoante os casos. A Rússia, que estava em recessão antes de decretar a suspensão do pagamento, teve a seguir uma taxa de crescimento anual na ordem dos 6 % (período de 1999-2005). Joseph Stiglitz, que entre 1997 e 2000 foi economista chefe do Banco Mundial, sublinha: “Empiricamente existem muito poucas provas a favor da ideia de que uma suspensão de pagamento implique um longo período de exclusão no acesso aos mercados financeiros. A Rússia conseguiu voltar a obter crédito nos mercados financeiros dois anos após a suspensão de pagamento (de 1998), que foi decretada unilateralmente, sem consulta prévia aos credores. […] Por isso, logo aí, a ameaça de ver fechar-se a torneira do crédito não é realista.”4

Resumindo em duas frases: é possível repudiar ou suspender unilateralmente o pagamento da dívida e relançar a economia. Não sendo uma condição suficiente para resolver todos os problemas, revela-se ao mesmo tempo indispensável e útil em certas circunstâncias.

Agradecimentos : O autor agradece a ajuda, a revisão e as sugestões de: Pierre Gottiniaux, Nathan Legrand, Brigitte Ponet e Claude Quémar. O autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros contidos neste trabalho.

Tradução de Rui Viana Pereira

Artigo de Éric Toussaint, publicado em cadtm.org


1 Analiso tudo isso no estudo: Éric Toussaint, «Lénine et Trotsky face à la bureaucratie – Révolution russe et société de transition», publicado em 21/01/2017, http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article37007

2 O destino dos membros da delegação que representou o Governo soviético em Génova ilustra bem a evolução dramática do regime e os efeitos da política encabeçada por Estaline. A delegação era composta por: Georges Tchitcherine, Adolph Joffé, Maxime Litvinov, Christian Rakovski, Leonid Krassine. Tirando o último, que faleceu de doença em 1926 em Londres, o que aconteceu aos restantes é significativo.

Georges Tchitcherine caiu em desgraça em 1927-1928.

Adolph Joffé suicidou-se em 16/11/1927, deixando uma carta de despedida a Trotsky que é um verdadeiro testamento político. O seu enterro é uma das últimas grandes manifestações públicas “autorizadas” da oposição anti-estalinista.

Maxime Litvinov, a 3/05/1939, foi demitido das suas funções em circunstâncias violentas: a GPU cercou o seu ministério, os seus assistentes foram espancados e interrogados. Litvinov era judeu e fervoroso partidário da segurança coletiva; a sua substituição por Molotov aumentou a margem de manobra de Estaline e facilitou as negociações com os nazis. Destas resultaria o pacto germano-soviético, em agosto de 1939, que teve consequências funestas. Após o ataque nazi de 1941 contra a URSS, Litvinov regressa ao serviço.

Christian Rakovski, camarada de Trotsky desde antes da Primeira Guerra Mundial e que se opunha à burocracia desde o início dos anos 1920, foi executado em 1941 pela GPU, por ordem de Estaline.

3 Ver no sítio do senado francês: “Accords relatifs au règlement définitif des créances entre la France et la Russie antérieures au 9 mai 1945”, senat.fr

4 Stiglitz in Barry Herman, José Antonio Ocampo, Shari Spiegel, Overcoming Developing Country Debt Crises, OUP Oxford, 2010, p. 49.

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