Autarca de Lampedusa denuncia “holocausto moderno no Mediterrâneo”

29 de dezembro 2013 - 1:21

Giusi Nicolini continua a indignar-se com as políticas “desumanas” da UE e a defender que o crime de imigração clandestina deve ser abolido, como o foram o apartheid e as leis raciais.

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Em entrevista ao portal Mediapart, Giusi Nicolini denuncia a forma desumana como a Europa trata os refugiados no Mediterrâneo.

“Está a acontecer um holocausto moderno no Mediterrâneo”, afirmou Giusi Nicolini em entrevista ao portal francês Mediapart. Para a presidente ecologista de Lampedusa, “a verdade foi revelada a toda a gente, em primeiro lugar pelo papa Francisco na sua visita a Lampedusa, e depois de forma dramática no naufrágio de 3 de outubro”. A autarca aponta o dedo aos responsáveis: “todos os países europeus”. Mas também aponta a alternativa: “Mudar imediatamente as políticas de asilo e imigração que conduziram a estes dramas”, a começar pela lei Bossi-Fini-Maroni, de que é uma das mais veementes contestatárias. “Esta lei não funciona e o centro de Lampedusa é a prova disso”, explica Giusi Nicolini, lamentando que o país se esforce por salvar vidas no mar para depois, em terra, ver esses esforços anulados “vergonhosamente pela forma de acolhimento, ou melhor, de prisão, que nem garante uma cama a essas pessoas. Fazemo-los dormir no chão, tratamo-los como animais”, acusa a autarca, que não tem responsabilidade sobre o funcionamento do centro de acolhimento. Embora se situe na sua ilha, o funcionamento do centro encontra-se sob a alçada da autarquia siciliana de Agrigente.

“Espero que depois do que aconteceu em Lampedusa, as pessoas se lembrem que um homem que vem do mar num desses barcos a afundar é antes de tudo um náufrago, antes de ser um refugiado, um requerente de asilo, um migrante económico ou ou migrante irregular. É antes de tudo um náufrago e deve ser tratado como tal”, defendeu Giusi Nicolini em entrevista à Mediapart. Na véspera de Natal, o Governo italiano anunciou a intenção de “esvaziar” o centro de acolhimento de refugiados, onde ainda permanecem muitos dos sobreviventes do naufrágio de 3 de outubro a poucos quilómetros da ilha.

“Entre 8 e 15 de dezembro cerca de 700 migrantes deram entrada no centro de Lampedusa, que apenas dispõe de 250 camas” , revela a autarca de Lampedusa. Giusi Nicolini também ficou incomodada com as imagens do interior do centro divulgadas pelos media. “É uma forma totalmente desumana de acolher as pessoas que acabam de ser salvas de afogamento no mar”, declara a autarca, chamando a atenção em particular para a situação das mulheres: “quase todas as mulheres que aqui chegam foram violadas durante as viagens no deserto, ou na Líbia, ou nos centros-campos de concentração”, explica a autarca.

Sobre o papel da população local, que ronda os seis mil habitantes, Giusi diz com orgulho que “na bacia do Meditterrâneo, Lampedusa é a única comunidade que não fez nada de que se possa envergonhar, cumpriu o seu dever até ao fim. Fá-lo já há quinze, vinte anos, junto das pessoas que arriscam a sua vida, junto dos vivos e dos mortos. Também tomamos conta dos mortos quando chegam”. O papel dos pescadores, de Lampedusa mas também da Sicília – que agora podem ser acusados de auxílio à imigração ilegal se ajudarem ao salvamento de pessoas em barcos à beira do naufrágio – também é sublinhado nesta entrevista.

“A União Europeia terá de mudar mais cedo ou mais tarde”

“A abolição do delito de emigração clandestina é uma medida fundamental e prioritária que temos de tomar. Punir alguém não pelo que fez, mas por quem é, isso é contrário aos nossos princípios jurídicos”, defende a autarca de Lampedusa, confiante que a UE será obrigada a rever as suas leis de imigração. “A um dado momento da história, chega a altura de apagar a vergonha. As leis do apartheid, as leis raciais já foram suprimidas”, recorda Giusi Nicolini. 

A autarca acredita que a Europa e o mundo já perceberam que o que acontece em Lampedusa não é a “invasão” ou o “tsunami humano” que ameaça a Europa-fortaleza, nem outras “mentiras” que eram repetidas há uns anos. “Hoje em dia todos estão conscientes, antes de mais – devo dizê-lo – graças ao papa Francisco, que os números de migrantes que vêm de África são verdadeiramente insignificantes face aos que entram ilegalmente através de outras fronteiras da nossa Europa”, argumenta.

“A Europa não pode mais permitir que estas pessoas paguem um preço tão elevado para proteger a sua fortaleza, que está aliás a implodir por outras razões, ligadas ao desenvolvimento doentio, ao poder da finança que tomou conta do poder político”, conclui Giusi Nicolini.