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Angola: Prisão dos ativistas “expôs o regime mais do que nunca”

“Só o desmantelamento do regime e o afastamento de José Eduardo dos Santos ajudarão a construir nova cultura política”, defende Domingos da Cruz. Livro do jornalista angolano “Angola amordaçada” foi apresentado em Lisboa por Francisco Louçã.
Foto de Rede Angola.

Detido em junho de 2015, juntamente com outros ativistas angolanos, entre os quais Luaty Beirão, Domingos da Cruz esteve em prisão preventiva durante 9 meses. Em março deste ano, foi condenado por “atos preparatórios de rebelião”, contando com a pena mais alta do processo - 8 anos e meio de prisão. O jornalista foi entretanto abrangido por uma amnistia do regime que ditou a sua libertação em junho.

Na acusação do Ministério Público é referido que os ativistas participavam num curso que tinha por base o livro de Domingos da Cruz Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura: Filosofia Política de Libertação para Angola, um livro adaptado do livro de Gene Sharp From Dictatorship to Democracy: A Conceptual Framework for Liberation (Da Ditadura à Democracia: Uma Abordagem Conceptual para a Libertação).

Domingos da Cruz, licenciado em Filosofia e Mestre em Ciências Jurídicas sobre Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil, está em Lisboa por ocasião do lançamento do seu livro “Angola amordaçada - a imprensa ao serviço do autoritarismo”, editado pela Guerra e Paz.

Em entrevista à Sic Notícias, o ativista, jornalista e académico angolano defendeu que “só o desmantelamento do regime e o afastamento de José Eduardo dos Santos ajudará a construir uma nova cultura política para Angola”.

Processo dos ativistas angolanos “deixou a nu a imagem do regime”

Antes do lançamento do seu livro, Domingos da Cruz afirmou, em entrevista à Lusa, que o processo dos ativistas angolanos “promoveu a deliberação pública”, ainda que “insuficiente (…), pouco profunda, demasiado parcial”.

No final de contas, “deixou a nu a imagem do regime e isso é discutido nos mais variados fóruns, nos restaurantes, nos cafés, nas escolas, nas instituições de ensino superior”, acrescentou.

O jornalista rejeitou a ideia de que existe uma “oposição” em Angola: “Eu recuso-me a usar essa terminologia, porque entendo que oposição, do ponto de vista técnico, pressupõe que um país seja democrático”, sublinhou.

Ora, esse “não é o caso” de Angola. “Neste momento, é uma ditadura e as ditaduras não permitem propriamente oposições, o que permitem são pequenos grupos de resistência, que podem estar fora ou dentro dos parlamentos para se legitimarem no plano interno e internacional”, avançou.

Segundo alertou o ativista, “muitas vezes, esses grupos são importantes categorias para justificar e legitimar o exercício autoritário de poder a que eles chamam de democracia”.

De Eduardo dos Santos “não espero nada de bom para Angola ou para os angolanos”

Domingos da Cruz afirmou que ouviu “com desprezo e sem muita expetativa” o discurso do estado da nação proferido pelo presidente angolano, José Eduardo dos Santos, na segunda-feira: “Dele não espero nada de bom para Angola ou para os angolanos”, frisou, acrescentando que, “por opção filosófica”, não presta atenção “à agenda do Presidente e do seu grupo”, pois, “quando se bate de frente contra uma ditadura, um regime autoritário, o pior que se pode fazer é deixar-se mover de acordo com a agenda do regime”.

O ideal é ter uma “agenda própria” e obrigar o regime a reagir, sendo que o caso da prisão dos ativistas é “a prova de que isso funciona”, pois “expôs o regime mais do que nunca”, deixando “claro, de uma vez por todas, que Eduardo dos Santos está ao lado dos grandes chefes autoritários do mundo”, como Robert Mugabe (Zimbabué) e Teodoro Obiang (Guiné Equatorial), adiantou o ativista.

Media ao serviço do regime têm como objetivo “criar um pensamento único”

No livro apresentado esta quinta-feira por Francisco Louçã na livraria Bertrand do Picoas Plaza, em Lisboa, Domingos da Cruz fala sobre a comunicação social em Angola, nomeadamente aquela que, “ao serviço do regime", tem como objetivo “criar um pensamento único”.

Em causa estão, segundo o jornalista, além dos órgãos oficiais Angop, TPA, Rádio Nacional e Jornal de Angola, os meios ligados às igrejas, “todas alinhadas com o regime” e “parceiras fundamentais para que se possa manter a ditadura em Angola”, e os "privados que são propriedade de indivíduos ligados ao regime, que se prestam ao mesmo trabalho de manipulação permanente”.

O ativista apontou que existem órgãos independentes em Angola, dando o exemplo da Folha 8, o Clube-K e a Rádio Despertar, cujo trabalho foi “fundamental para a libertação” dos ativistas.

“Persecução é sistemática, contínua e permanente”

Segundo Domingos da Cruz, atualmente, os ativistas têm “a vida completamente esfacelada”, pois “a persecução é sistemática, contínua e permanente” em Angola. “A minha prioridade é estar ao lado da minha família e ver o meu estado de saúde”, destacou, lembrando as "condições horríveis" a que foram sujeitos na prisão.

Mas, apesar de “preocupados em reerguer-se no ambiente familiar e pessoal”, os ativistas continuam “a fazer ações pontuais, subscrevendo pequenos protestos e declarações”, salientou.

O jornalista tem esperança de fazer chegar o livro a Angola. “Dependerá, como é óbvio, da vontade arbitrária e draconiana do tirano”, ironizou. “Eu continuarei a trabalhar, porque é uma opção que fiz. Quero continuar a produzir ideias”, assegurou.

“Estamos aqui a fazer uma coisa que pode resultar numa nova prisão”

Durante a apresentação do livro, Domingos da Cruz assumiu que a iniciativa acarreta alguns riscos.

“Estamos aqui a fazer uma coisa que pode resultar numa nova prisão” em Angola, assinalou o ativista e jornalista, acrescentando que é um risco que assume por inteiro, por ter “vergonha, enquanto angolano, do estado de estagnação do ponto de vista civilizacional” em que o seu país se encontra.

O economista e ex-dirigente do Bloco de Esquerda Francisco Louçã, convidado para apresentar o livro “por ser alguém com uma intervenção cívica exemplar”, começou por reforçar exatamente os riscos de o fazer.

“Eu nunca tinha apresentado o livro de alguém que foi apanhado a conspirar contra o Estado e que foi condenado a oito anos de prisão pelo crime de estar a ler um livro, este livro! Ora, como nós estamos numa livraria e vamos ler o livro e falar sobre ele, sabe-se lá o que pode acontecer”, referiu.

Louçã avançou que o julgamento dos ativistas angolanos foi uma farsa e que a amnistia de que foram alvo deveu-se ao facto de o regime querer salvar a face quando o caso chegou ao Supremo Tribunal.

O economista e ex-dirigente bloquista defendeu ainda que “a ideia de liberdade de expressão, de liberdade de imprensa, é essencial, faz parte da condição humana”, elogiando o ativista angolano.

“Creio que Angola se deve orgulhar dos seus filhos, como o Domingos da Cruz, e do que eles tiverem para dizer”, vincou.

Domingos da Cruz explicou que convidou Francisco Louçã por uma questão de coerência, “por existir, entre o seu discurso e o seu percurso uma coerência”. O jornalista lembrou que, quando os 17 ativistas foram detidos, no ano passado, Louçã foi a Angola e encontrou-se com a sua mulher para lhe expressar de viva voz a sua solidariedade.

O ativista aproveitou ainda para agradecer ao diretor do jornal Folha 8, William Tonet, onde trabalha, referindo que este continuou regularmente a pagar à sua mulher enquanto esteve preso, “e pagou até um pouco mais”.

“É a pessoa mais livre que conheço. Ele tem mais de 100 processos judiciais, tudo por causa do seu exercício do jornalismo”, cujos únicos limites são os da sua consciência, frisou.

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