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Alemanha: Um acordo governamental de tipo helvético

Excetuando o salário mínimo, o acordo entre Ângela Merkel e Sigmar Gabriel, dirigente do SPD, representa a continuidade das políticas traçadas pela CDU enquanto governou sozinha nos últimos anos, em particular em relação à Europa. Por Martine Orange
Sigmar Gabriel, do SPD: militantes de base questionam o acordo.

Assinaram um acordo de governo, na quarta-feira 27 de novembro. Mas o que assinaram eles ao certo? No dia seguinte ao anúncio do acordo assinado entre a CDU de Ângela Merkel e o SPD de Sigmar Gabriel, os membros do SPD começam a interrogar-se. Este projeto de coligação governamental é bom? Ou não corre o risco de ser ruinoso para o partido como foi a de 2005? O exame das propostas contidas no projeto de governo pode tornar-se efervecente nos próximos dias. Porque serão os cerca de 470 000 militantes do SPD que detêm a chave da coligação governamental. O acordo serásubmetido ao seu voto. O resultado do escrutínio interno será conhecido a 14 de Dezembro.

“Este acordo é feito a pensar nos mais fracos”, explicou o chefe do SPD tentando ganhar votos. Mas um grande número de militantes do partido começou a revelar hesitação – leia-se, a falar da sua recusa em aprovar o texto. Hesitações bem compreensíveis.

Porque à primeira leitura, este acordo está longe de contemplar as ideias defendidas [ já de si mais do que moderadas] durante a campanha eleitoral. A tendência dominante do projeto é no entanto a de dar continuidade à política que tem vindo a ser seguida desde 2005, o SPD a influir apenas marginalmente nas orientações do futuro governo. Ao que parece, o governo Merkel 3 vai assemelhar-se terrivelmente ao Merkel 2

Pensava.-se que um assunto iria servir de teste: o salário mínimo. Durante a campanha, Ângela Merkel tinha dito todo o mal que podia dessa proposta defendida pelo SPD. Para a chanceler, isso seria prejudicial para a competitividade das empresas alemãs e para boa saúde da economia e do emprego. Ao anunciar no acordo que será criado na Alemanha um salário mínimo de 8,50 euros por hora, Ângela Merkel parece pois ter feito uma concessão imensa.

Mas há um subtexto. A haver salário mínimo, ele só será definitivamente instaurado a 1 de janeiro de 2017. Enquanto aguarda, a nova coligação pretende promover o diálogo entre patronato e sindicatos para se chegar a acordos sobre o salário mínimo por sector. Está já previsto também que em certos empregos, como os dos trabalhadores sazonais ou os do sector agroalimentar, por exemplo, os valores ficarão de qualquer modo abaixo do valor do salário mínimo.

Compreende-se a prudência de alguns eleitos do SPD que hoje vieram pedir esclarecimentos, mais concretamente sobre as nomeações. “Não é a mesma coisa ser a CDU ou nós a ficar com o ministério do trabalho”, faz notar Michael Roth, secretário geral do SPD do Land de Hess. Tendo em conta os termos fixados no acordo sobre o salário mínimo, a proposta pode ser inteiramente afastada, esvaziada do seu sentido ou pelo contrário, reforçada, em função da pessoa que ocupar o cargo.

Por enquanto, os dois partidos recusaram dar quaisquer indicações sobre a distribuição de lugares. Certo parece estar que a CDU e o SPD terão cada um sete ministérios e que a CSU (direita bávara), três. Angela Merkel seráforçosamente chanceler, Sigmar Gabriel deverá ficar com a vice-presidência. E Wolfgang Schäuble, homem incontornável para a chanceler, é considerado inamovível; deve regressar às suas funções no ministério das finanças.

O outro grande tema social eram as reformas. A CSU insistia muito no aumento das reformas para mulheres que tivessem abandonado o emprego para cuidar dos filhos ou que tivessem estado mais expostas ao trabalho precário. Pelo seu lado, o SPD queria que os assalariados que tivessem 45 anos de descontos pudessem sair aos 63 em vez de aos 67 anos, sem penalização. Foi dada satisfação aos dois partidos. Por fim, e agora que as grandes cidades alemãs começam a descobrir a especulação imobiliária, a coligação comprometeu-se a prosseguir a sua política de enquadramento dosalugueres e a fixar um teto máximo de 15% de aumento para os próximos quatro anos.

Colocar a tónica sobre os reformados em vez da educação, apoiar as mães na reforma em vez das jovens mães, controlar as rendas em vez de desenvolver a habitação social – numa palavra colocar a maioria de pessoas idosas como o alvo da política – é significativo”. A Alemanha pode parecer o homem forte da Europa, mas as suas fragilidades são evidentes. A Alemanha envelhece eretrocede»,comenta Alan Posenerdo diário inglês The Guardian(25 de Novembro 2013).

A única novidade política é o compromisso da coligação em autorizar os filhos de pais imigrados, nascidos na Alemanha mas que não tenham nacionalidade de um outro país da União, a obter a dupla nacionalidade. Hoje, eles são obrigados a escolher entre uma das duas nacionalidades aos 23 anos. Mas é verdade que alguns meios ligados ao patronato apoiam esta medida proposta pelo SPD.

Europa, a grande ausente

Mas já os meios patronais e numerosos “especialistas” se inquietam com estas “despesas loucas”e com a derrapagem das contas públicas. “A Alemanha vai deixar de ser um modelo para a Europa”, alertam. “O maior problema é a associação de regras mais estritas sobre o mercado do trabalho, a fusão da idade da reforma e a criação de novos benefícios fiscais para os reformados”afirma Clemens Fuest, diretor do Centro Europeu de Investigação Económica (ZEW). “Isto vai conduzir a uma subida dos encargos com a segurança social e reduzir o emprego no momento em que temos necessidade de mais emprego”, afirma convicto.

Os gritos de alarme sobre o desmoronar do modelo alemão são, no entanto, de relativizar, em face dos números avançados. Os dois partidos previam um valor para as novas despesas públicas relativas ao sector social, às infraestruturas e energia, e ao relançamento do investimento e da investigação, de 23 mil milhões de euros suplementares. Isso representa 0,6% do PIB alemão.

Os esforços de relançamento da Alemanha a que o FMI e os Estados Unidos fizeram apelo para, por arrastamento, relançar toda a zona euro, arriscam-se a falhar. Para mais Ângela Merkel e Sigmar Gabriel confirmaram a sua intenção de não aplicar o mais pequeno golpe que seja na “virtude” orçamental alemã. Os dois partidos comprometeram-se a não fazer qualquer aumento de impostos, a realizar um equilíbrio orçamental a partir de 2014 e criar um consequente excedente, e por fim a não recorrer a qualquer endividamento suplementar, ou até mesmo a diminuí-lo, se possível.

Mas a continuidade mais chocante diz respeito àEuropa. A prova? O assunto não consta sequer do acordo CDU-SPD. Muitos jornalistas se inquietaram, a propósito disso, com a ausência de referência à Europa, como se a crise europeia não existisse, como se novos perigos não emergissem. Isso não foi um acaso, os dois partidos estão mais ou menos de acordo em tudo: a regra alemã deve impor-se a todos.

Apesar das proclamações de tribuna muitos dirigentes do SPD, os que negociaram com Angela Merkel, partilham a sua análise sobre a organização da Europa. Está fora de questão mutualizar as dívidas dos países ou criar os eurobonds, cada país deve continuar responsável pelos compromissos assumidos no passado. Para harmonizar a zona euro, cada país deve prosseguir as reformas estruturais. Está fora de questão ajudar qualquer país sem um plano de austeridade e sem metas numéricas a atingir. Mesmo que o FMI se venha a retirar do processo dos resgates europeus, os métodos da troika devem continuar a aplicar-se.

Por fim, a união bancária, para os dois partidos, não pode fazer-se a não ser seguindo o esquema já fixado pela Alemanha: cada país deve supervisionar os seus bancos e assumir o seu eventual resgate. Em caso de falência bancária, o processo iniciado em Chipre deve ser aplicado: os acionistas, detentores de obrigações e também os depositantes devem ser chamados a contribuir antes de qualquer ajuda pública se aplicar.

O propósito criado por este programa arrisca-se a contrariar as expetivas de uma larga maioria da base do SPD. É tudo o que resta da social-democracia europeia que vê as suas esperanças caírempor terra. Se a grande coligação desejada por Ângela Markel está criada, os projetos de reunir as forças sociais-democratas para propor uma outra política no momento das eleições europeias ficarão arruinados. Como é que já se diz? There is no alternative. Não é a demonstração do que Ângela Merkel pretende fazer? (28 de Novembro 2013, publicado no site Mediaparttitulo da redação de A l'Encontre).

Publicado em A l’Encontre, 30 de novembro 2013

Tradução de Natércia Coimbra para o Esquerda.net

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