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Acordo UE-EUA: O que nos reserva a maior zona de livre comércio do mundo? (I)

Este artigo, que será publicado em duas partes, informa sobre o que está em discussão no tratado transatlântico, que está a ser negociado entre a União Europeia e os Estados Unidos. Na primeira parte, a autora Agnès Rousseaux responde a perguntas básicas. A segunda parte, aponta questões essenciais que estão em causa neste acordo.
David Cameron, Barack Obama, Angela Merkel, Durão Barroso e François Hollande veem futebol durante a reunião do G8 em maio de 2012 - Foto Wikimedia

É um assunto de que se irá ouvir falar cada vez mais em 2014. Em Washington, de 16 a 20 de dezembro teve lugar a terceira ronda de discussão do futuro acordo comercial entre a Europa e os Estados-Unidos. O que discutem os negociadores europeus? É difícil saber precisamente, tal a opacidade reinante. Contudo, este acordo poderá ter graves consequências sobre o nosso modelo social, as nossas regulamentações ecológicas, ou o enquadramento dos mercados financeiros. Em resumo, sobre a nossa capacidade de fazer escolhas democráticas. Quais são os interesses em jogo? Que ameaças? Decifremos.

O que é o acordo transatlântico em discussão?

É o mais importante acordo comercial jamais negociado. Estando em discussão entre a União Europeia e os Estados-Unidos, ele tem a ver com metade do PIB mundial e 40% do comércio mundial. Visa “estimular o crescimento e criar empregos”, eliminando as barreiras comerciais entre os dois continentes. Criando a maior zona de livre comércio do mundo, este acordo deve proporcionar 120 mil milhões de euros por ano à economia europeia, 90 mil milhões aos Estados-Unidos e até 100 mil milhões ao resto do mundo.

Estes números, em que a Comissão Europeia baseia a sua comunicação, são extraídos de um estudo “independente”, conduzido pelo Centre for Economic Policy Research (ler aqui). Só que este centro de investigação é dirigido por representantes dos bancos. E realizar uma projeção económica até 2027 com previsões até às décimas parece muito arriscado. Para a Comissão Europeia tanto faz – num parágrafo intitulado “Quais as eventuais mudanças que a TTIP trará para a minha vida?” - ela prevê nos próximos 15 anos um aumento médio dos rendimentos de 545 euros em cada agregado familiar europeu graças a este acordo.

Sobre o que trata o acordo?

Ele tem a ver com todas as atividades económicas. O acordo acarreta a eliminação dos direitos aduaneiros, que são atualmente de 4% em média entre os dois continentes. E sobretudo sobre a eliminação dos “obstáculos não pautais”, regras e regulamentações julgadas supérfluas: diferenças de regulamentos técnicos, normas, procedimentos de aprovação, que se trata de harmonizar1. Um exemplo abundantemente citado: quando uma viatura é declarada “segura” na União Europeia, deveria sê-lo também nos Estados-Unidos, se as normas de segurança são as mesmas. “Esta redução da burocracia baixará os custos e, consequentemente, os preços”, explica a Comissão. Mantendo sempre os “níveis de proteção da saúde, da segurança e do ambiente que cada parte julga apropriadas”2.

Dois mil milhões de euros de bens e serviços são trocados diariamente entre os dois continentes. Os direitos aduaneiros são já muito moderados. O verdadeiro desafio é a convergência das regulamentações e das normas sociais, ambientais e sanitárias. Face à estagnação das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) na última década, um tal acordo poderá servir de base aos estabelecimento de regras mundiais sobre o comércio. O desafio é elevado e os riscos são grandes. A UE realizou um estudo de impacto para avaliar “o que poderia acontecer na sequência de diferentes graus de liberalização do comércio”, explica a Comissão Europeia: “Em qualquer dos casos, a conclusão geral da UE foi positiva; mas ficou sobretudo claro que, quanto mais liberalização existir, tanto melhor será o resultado global.” Ficamos prevenidos.

Porque se fala tão pouco sobre o acordo?

O assunto é complexo e a opacidade é a regra. Mesmo o nome desta parceria é complicado: “Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento UE/EUA (TTIP)”.

Quem negoceia pela Europa?

Politicamente, as negociações são conduzidas pelo comissário do comércio Karel De Gucht, que tem alguns problemas judiciais. É atualmente acusado de fraude fiscal na Bélgica. O seu mandato poderá ser posto em causa depois das eleições europeias de maio de 20143. Tecnicamente, é um responsável da Direção geral do comércio que os conduz: o espanhol Ignacio Garcia Bercero, que trabalha há 25 anos na Comissão Europeia.

O acordo será submetido a um processo democrático?

As negociações começaram em julho de 2013. Depois de uma semana de negociações em novembro, a terceira ronda teve lugar entre 16 e 20 de dezembro. Uma quarta será realizada em Bruxelas em março. A Comissão espera chegar a um acordo até 2015. Este acordo será então submetido para validação ao Conselho, onde têm lugar os governos dos Estados-membros, e ao Parlamento europeu, cuja nova composição sairá das eleições de maio próximo.

Quem definiu o mandato dos negociadores?

O “mandato” dado aos negociadores foi discutido entre os governos dos países europeus. Problema: o documento está classificado como de “difusão restrita”. Uma decisão criticada por eurodeputados e pela ministra francesa do Comércio externo, Nicole Bricq: “Um tal acordo não pode ser feito nas costas dos povos e das sociedades civis”, escreveu ela ao comissário europeu em julho... Vários países, incluindo a Alemanha, opõem-se à desclassificação deste documento. Sucessivas versões circulam desde há seis meses (descarregar o documento aqui).

As grandes orientações foram também traçadas por um “grupo de alto nível”, criado pela Europa e pelos Estados-Unidos em 2011 para examinar os efeitos potenciais desta zona de comércio livre. Ele fez as suas recomendações em fevereiro de 2013. Quem são estas pessoas “de alto nível”? Mistério. “Não existe nenhuma lista de membros deste grupo de trabalho” e “nenhum documento contém a lista dos autores dos relatórios”, respondeu a Comissão Europeia ao Corporate Europe Observatory (CEO), um observatório independente sobre as práticas de lobbying. Depois de muitas tentativas, a ONG acabou por obter – dos Estados-Unidos! - uma lista (consultar aqui) dos responsáveis e técnicos deste grupo: “burocratas, pró livre-comércio notórios, não eleitos e que não têm de prestar contas”, resume o CEO.

Por que a opacidade é a regra?

Para as negociações comerciais poderem funcionar e terem êxito, é necessário um certo grau de confidencialidade; caso contrário, seria como mostrar ao outro jogador o seu próprio jogo num jogo de cartas”, explica tranquilamente a Comissão. Ela compromete-se entretanto a “manter informados do curso das negociações” os Estados-membros e o Parlamento Europeu. Informar os cidadãos do avanço das negociações não parece constituir uma prioridade. E certamente que os Estados-Unidos, por via da NSA, saberão já todo o “jogo” do seu adversário. Cálculo brilhante.

Qual é o peso dos lóbis e dos interesses privados nas negociações?

Se a opacidade é total para os cidadãos, ela é menor para os grandes grupos privados. Depois de múltiplos pedidos do Corporate Europe Observatory, a Comissão Europeia divulgou uma lista de 130 reuniões com decisores sobre estas negociações (ver a lista aqui).Pelo menos 119 delas (ou seja 93%) foram com multinacionais ou com os seus grupos de pressão. “Ao lado das reuniões de diálogo da sociedade civil assinaladas no site da direção do comércio, há o universo paralelo das inúmeras reuniões com os lobistas das grandes empresas, em pequenos grupos à porta fechada”, comenta o CEO. Quem são os frequentadores habituais destas reuniões? A associação europeia dos patrões BusinessEurope e o lóbi da indústria automóvel ACEA, recebidos por nove vezes, cada um. Assim como a indústria do armamento, os bancos, a indústria farmacêutica, a indústria agro-alimentar e os lóbis da química.

Regulação dos mercados financeiros, agricultura, mercados públicos, OGM, gás de xisto... Quais são os assuntos sensíveis?

Nenhuma concessão será feita sobre assuntos espinhosos como a importação de OGM e de carne com hormonas, ou o gás de xisto, prometem os negociadores. Nem sobre o setor audiovisual, oficialmente “protegido” pela Europa. Mas no calor das negociações, nada é impossível... As discussões arriscam-se portanto a ser tensas sobre as questões agrícolas. Outro assunto de crispação: o alinhamento das legislações sobre a finança. Um desafio considerável, já que cobre 60% das atividades bancárias mundiais. Em Washington, o secretário do Tesouro reiterou que os Estados-Unidos desejam excluir o setor financeiro do acordo, preferindo discutir no G20. E evitar também o retorno à lei Dodd-Frank sobre a regulação financeira, duramente conseguida, e mais avançada que as raras tentativas europeias de regulação. Os Estados-Unidos querem também proteger os seus mercados públicos, dos quais apenas 30% estão abertos às empresas estrangeiras, devido ao Buy American Actintroduzido em 1933. A taxa de abertura é de 95% para os mercados públicos na Europa e as empresas europeias pretenderão investir muito mais no mercado americano. Mas é sobretudo a questão da “regulação dos diferendos”, para proteger os investidores, que levanta problemas.

Artigo de Agnès Rousseaux, publicado em 19 de dezembro de 2013 em Basta! Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


1 “... até 80% dos benefícios económicos da TTIP proviriam do corte dos custos impostos pela burocracia e pela legislação, assim como da liberalização do comércio no setor dos serviços e dos concursos públicos...” diz a Comissão.

2 Fonte: Grupo de alto nível para o emprego e o crescimento, Relatório final, 11 de fevereiro de 2013. “Nos trabalhos preparatórios das negociações, a UE e os Estados-Unidos decidiram que era preciso “reduzir os custos inúteis e os prazos administrativos impostos pelas regulamentações atingindo sempre os níveis de proteção da saúde, da segurança e do ambiente que cada parte julgue apropriadas”. (ler aqui, em inglês)

3 O Estado belga exige-lhe 900.000 euros por não ter declarado, segundo a administração belga, uma mais-valia de 1,2 milhões de euros numa operação de venda de ações.

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