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A viola no saque

Durante uma semana e de forma articulada, uma multidão de comentadores e de dirigentes políticos da Direita tentou convencer o país de uma mentira. Agora, meteram a viola no saco.

Afinal, quem tem património imobiliário acima dos 500 mil euros é apenas 1% dos contribuintes mais ricos. E contas feitas, com dados da Autoridade Tributária, o tal do imposto que era "um saque” e “um crime contra a classe média” só atinge 0,2% das famílias (sim, 0,2%!). Embaraçados, os comentadores, com José Gomes Ferreira à proa, tentaram mudar de assunto. PSD e CDS remeteram-se ao silêncio. Aquilo que há uns dias era “a sovietização do país” (de acordo com um deputado do PSD), afinal já não tem importância nenhuma. No debate quinzenal no Parlamento, com o primeiro-ministro e todos os partidos, Passos Coelho não tocou no tema. Cristas fez igual. E essa espécie de grupo parlamentar dos comentadores alinhou pela mesma bitola. Como a mentira ficou escandalosamente evidente, já não interessa falar do assunto.

Mas vale a pena insistir nele. O imposto sobre os bens patrimoniais de luxo é uma medida pertinente, socialmente justa e acertada do ponto de vista político. Pede uma pequena contribuição aos mais ricos (mais concretamente, a 0,2% das famílias) para poder utilizar a verba resultante, por exemplo, para aumentar as pensões, congeladas durante anos. De acordo com cálculos que são públicos, uma proposta como a que foi apresentada poderia render 190 milhões de euros. Ora, 188 milhões é o valor que custaria aumentar em 7 euros por mês todas as pensões até aos 714 euros, isto é, aumentar em 7 euros as pensões de 1 milhão e 928 mil pessoas, o que corresponde a 80% dos pensionistas. Alguém está contra?

O debate que importa é justamente este. Que medidas são capazes de distribuir a riqueza num país tão desigual? Faz sentido tributar o património e não só os rendimentos? Como diminuir a desigualdade para combater a pobreza?

Hoje foi apresentado publicamente o estudo “Portugal Desigual”, coordenado por Carlos Farinha Rodrigues. Algumas das conclusões já tinham vindo a ser divulgadas durante a semana: Portugal continua a ser um dos países com maior desigualdade da Europa, e ela agravou-se ainda mais que nos outros países durante o período da austeridade; em Portugal aumentou não apenas a proporção de pobres (de 17,9% para 19,5%), mas a intensidade da pobreza; a austeridade penalizou mais os mais pobres, que perderam 25% do seu rendimento nos anos da troika; um dos problemas crónicos do país são os salários baixos (29% recebe menos de 700 euros, quase 10% dos trabalhadores vive abaixo do limiar da pobreza); a política de austeridade retirou 132 euros ao ganho médio dos trabalhadores portugueses; a economia dos baixos salários (e das baixas pensões que deles resultam) gera pobreza e explica a desigualdade; há uma forte associação entre pobreza e desigualdade: quanto mais desigual a distribuição dos rendimentos entre a população, mais pobre é um país.

A estes dados, poderíamos somar outros, constantes de um relatório da OCDE (uma instituição insuspeita de simpatias esquerdistas) sobre a evolução das desigualdades. Refere o relatório (p.25) que “as desigualdades já tinham aumentado em período de crescimento, e agravaram-se em período de crise” (a crise agravou a desigualdade, mas não basta crescer para diminuí-la). Considera ainda (p.29) que o aumento das desigualdades “constitui um evidente travão ao crescimento a longo prazo”, que “as medidas de redistribuição [ou seja, as que se fazem via impostos ou prestações sociais] não atrasam o crescimento”, fazendo pelo contrário “parte da solução”. Além disso, escreve-se no documento, “a concentração de património acentua as disparidades”. Porquê? Porque “o património se reparte de forma muito mais desigual que o rendimento”, sugerindo-se inclusive que os países “repensem o seu sistema fiscal” reavaliando, no âmbito do combate às desigualdades, “o papel que pode ter a tributação de todas as formas de propriedade e património” (p. 55).

Tributar fortunas acumuladas e património de luxo é pois uma boa escolha económica e é um imperativo de justiça. É certo, como se provou, que os comentadores e os deputados que tentaram lançar o pânico esta semana não são muito sensíveis nem a factos nem a argumentos – e até os dispensam. Mas a estratégia que montaram em conjunto não tinha fundamento, não deu certo e, já se percebeu pelo silêncio, saiu derrotada.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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