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A I Internacional, 150 anos depois

A experiência da Primeira Internacional não pode ser repetida, obviamente, mas ela é de extrema relevância para todos nós, no começo do século XXI. Artigo de Michael Löwy.
Imagem Wikimedia Commons

Marxistas e anarquistas (esses termos não eram comuns à época) fundaram a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, há exatos 150 anos. Os desacordos entre os partidários de Marx e de Bakunin levaram a uma amarga divisão em 1872. Logo depois, a AIT “marxista” dissolveu-se, de facto, enquanto os bakuninistas criaram, numa conferência em Saint-Imier, Suíça (1872), a sua própria AIT, que de maneira precária existe ainda hoje.

Para Marx, as razões para a cisão foram as tendências pan-eslávicas e o sectarismo antidemocrático e conspiratório de Bakunin. De acordo com Bakunin, a divisão resultou da orientação pan-germânica de Marx, assim como do seu comportamento intolerante e autoritário. Uma importante coletânea de textos históricos inéditos, organizada por Marcelo Musto e a ser em breve publicada pela Boitempo, expõe com clareza essas mazelas: Trabalhadores uni-vos: antologia política da I Internacional. O que se perde nesta abordagem, que predomina amplamente na literatura da Primeira Internacional, é o simples e importante facto de que essa era uma Associação onde, a despeito dos desacordos e conflitos, partidários de Proudhon, Marx, Bakunin, Blanqui e outros, puderam trabalhar juntos por muitos anos, eventualmente adotando resoluções comuns, e lutando lado a lado no maior evento revolucionário do século XIX, a Comuna de Paris.

Apesar da sua curta duração – apenas alguns meses – a Comuna de Paris de 1871 foi o primeiro exemplo histórico do poder revolucionário dos trabalhadores, democraticamente organizado – delegados eleitos pelo sufrágio universal – e suprimindo o aparato burocrático do Estado burguês. Foi também uma autêntica experiência pluralista, associando na mesma luta “marxistas”, proudhonianos de esquerda, jacobinos, blanquistas e republicanos sociais. Claro, as respetivas análises de Marx e de Bakunin sobre este evento revolucionário eram absolutamente opostas.

No entanto, as – inegáveis – divergências entre Marx e Bakunin, marxistas e anarquistas, não são tão simples e óbvias como comumente se crê.

Curiosamente, Marx regozijou-se do facto de que durante os eventos da Comuna os proudhonianos esqueceram a hostilidade de seu mentor para com a ação política revolucionária, enquanto certos anarquistas estavam satisfeitos com o esquecimento do centralismo e a adoção do federalismo nos escritos de Marx sobre a Comuna. É verdade que A Guerra Civil na França 1871, assim como a declaração sobre a Comuna que Marx redigiu em nome da Primeira Internacional e diversos rascunhos e materiais preparatórios deste documento, testemunham o feroz antiestatismo de Marx. Definindo a Comuna como uma forma política, finalmente encontrada, para a emancipação dos trabalhadores, ele insistiu na rutura com o Estado, este corpo artificial, esta jiboia-constritora, como ele o chamava, este pesadelo sufocante, este enorme parasita.

Entretanto, depois da Comuna, intensificou-se o conflito entre as duas tendências revolucionárias do socialismo internacional, levando à exclusão de Bakunin e Guillaume (seu seguidor suíço), no Congresso de Haia da AIT (1872), e a transferência desta para a sede em Nova York – de facto, a sua dissolução. Depois desta cisão, os anarquistas, como mencionado acima, fundaram sua própria Associação Internacional dos Trabalhadores.

A despeito da cisão, Marx e Engels não ignoraram os escritos de Bakunin e, em alguns casos, tiveram de concordar com os seus argumentos antiestatais. Um exemplo marcante é a Crítica do Programa de Gotha, de 1875.

Ao invés de contabilizar os equívocos e tropeços de cada lado do conflito – não faltam acusações mútuas – há de se enfatizar o aspecto positivo da Primeira Internacional: um diverso, múltiplo e democrático movimento internacionalista, onde participantes com abordagens políticas distintas foram capazes não apenas de coexistir, mas de cooperar no pensamento e na ação durante alguns anos, atuando como a vanguarda da primeira revolução proletária moderna. Foi uma internacional na qual marxistas e Libertaires, como indivíduos ou como organizações políticas (tais como o marxista Partido Social Democrata Alemão) puderam – a despeito dos conflitos – trabalhar juntos e se engajar em ações comuns.

As Internacionais posteriores – a Segunda, a Terceira e a Quarta – não tiveram muito espaço para os anarquistas. Entretanto, em diversos momentos importantes da história do século XX, anarquistas e socialistas ou comunistas foram capazes de unir forças.

  1. Nos primeiros anos da Revolução de Outubro (1917-1921), muitos anarquistas, tais como Emma Goldmann e Alexander Berkman, deram apoio (crítico) aos líderes bolcheviques.
  2. Durante a Revolução Espanhola, os anarquistas da CNT-FAI (Confederación Nacional del Trabajo – Federación Anarquista Ibérica) e os simpatizantes de Trotsky do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) lutaram lado a lado contra o fascismo, e se opuseram à orientação não-revolucionária dos stalinistas e dos sociais democratas de direita.
  3. No Maio de 1968, uma das primeiras iniciativas revolucionárias foi a fundação do Movimento 22 de Março, sob a liderança do anarquista Daniel Cohn-Bendit e o trotskista Daniel Bensaïd. Houve também diversas tentativas intelectuais significativas de juntar as duas tradições revolucionárias, entre escritores como William Morris ou Victor Serge, poetas como André Breton (o fundador do movimento Surrealista), filósofos como Walter Benjamin, e historiadores como Daniel Guérin.

A experiência da Primeira Internacional não pode ser repetida, obviamente, mas ela é de extrema relevância para todos nós, no começo do século XXI, quando novamente marxistas e anarquistas reúnem forças e agem conjuntamente, como indivíduos, como redes ou como organizações políticas (cuja existência não é um obstáculo à cooperação), no movimento Justiça Global, nas lutas ecológicas radicais, em apoio aos Zapatistas em Chiapas, nas mobilizações de massa dos Indignados (Espanha, Grécia), ou no Occupy em Wall Street e outros cantos do mundo.


* Uma versão ampliada deste artigo será publicada na edição 23 da revista Margem Esquerda, que chega às livrarias no final de outubro.

Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem Marx (2012) e organizador de Revoluções (2009) e Capitalismo como religião (2013), de Walter Benjamin, além de coordenar, junto com Leandro Konder, a coleção Marxismo e literatura da Boitempo. O seu mais recente livro é o inusitado A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberianoColabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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