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Alfredo Barroso: “As raízes ultraliberais da construção europeia”

No Fórum Socialismo que decorreu este fim de semana em Santa Maria da Feira, Alfredo Barroso fez uma intervenção no âmbito da discussão sobre o tema “Desobedecer à Europa” que o esquerda.net transcreve na íntegra.
Foto do Facebook de Alfredo Barroso

1. Serão muito poucos os que conhecem hoje a verdadeira história da construção europeia. A propaganda política mitificou-a e envolveu os chamados «pais fundadores» numa aura de santidade. E, no entanto, a construção europeia nada tem de divino. É, isso sim, o produto de uma longa luta das elites políticas conservadoras e dos potentados industriais, económicos e financeiros para readquirirem o domínio perdido no pós-guerra em resultado da criação e desenvolvimento do Estado social ou Estado-providência.

Poucos terão compreendido, logo na sua origem, as características ultraliberais e a abdicação democrática implícitas no projecto de mercado comum. Todavia, em 1957, há um político de esquerda que se destaca pela sua notável lucidez. Quando lhe apresentaram esse projecto, o político radical-socialista francês Pierre Mendés-France comentou-o da seguinte forma:

«O projecto de mercado comum, tal como nos é apresentado, baseia-se no liberalismo clássico do século XX, segundo o qual a concorrência pura e simples regula todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode assumir duas formas: ou recorrendo a uma ditadura interna pela entrega de todos os poderes a um homem providencial; ou pela delegação dos seus poderes numa autoridade externa, a qual, em nome do tecnicismo, exercerá na realidade o poder político, porque, invocando a necessidade de uma economia sã, facilmente se começa a impor uma política monetária, orçamental e social, isto é, uma política no sentido mais amplo da palavra, tanto a nível nacional como internacional».

Várias décadas mais tarde, os factos deram razão a Pierre Mendés-France confirmando as suas previsões. A União Europeia (criada pelo Tratado de Maastricht em 1992) constrangeu os Estados membros a abdicar da sua soberania, colocando-a ao serviço dos potentados económicos e financeiros. Mas levou tempo antes de verem surgir, finalmente, à luz do dia, a construção com que tanto sonhavam: um vasto mercado comum amplamente desregulamentado.

2. Nas primeiras décadas a seguir à II Guerra Mundial, a estabilidade social e a paz europeia repousavam numa prosperidade amplamente partilhada, na consolidação do Estado social resultante das lutas dos trabalhadores e na redistribuição da riqueza daí decorrente. Estas conquistas sociais, a par de uma política económica de inspiração keynesiana, eram a verdadeira garantia da paz e as alavancas para uma acentuada melhoria dos níveis de vida e para uma significativa redução das desigualdades em muitos países europeus.

Foi precisamente por causa disto que começou o «trabalho de sapa» por parte das elites políticas conservadoras (de ambos os lados do Atlântico Norte) e dos potentados industriais, económicos e financeiros, insatisfeitos por considerarem o Estado social como inimigo das empresas e um inadmissível empecilho à expansão dos seus negócios.

Para eles, as liberdades fundamentais só podiam ser «as liberdades de circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais». E para a nova mundialização, as fronteiras nacionais, os Estados soberanos, os serviços públicos e as regulamentações eram reais obstáculos à livre circulação das mercadorias e dos capitais.

Ao longo da década de 1950, o ultraliberalismo teorizado nos think tanks apoiados pelo governo dos EUA, e frequentados por poderosos industriais e financeiros, começa a produzir frutos e a estender a sua influência. O mais conhecido desses think tanks ultraliberais é a hoje famosa Sociedade do Mont-Pélerin, criada em 1947 pelo economista austríaco Friederich Von Hayek (1899-1992), que já preconizava o comércio livre integral e a desregulamentação total.

3. Convém salientar que os «pais fundadores» da construção europeia eram políticos estreitamente ligados ao mundo dos negócios e, inclusive, aos serviços secretos norte-americanos (CIA), mostrando-se totalmente a favor da estratégia definida pelos EUA para «moldar» a Europa Ocidental e fazer dela um instrumento de combate ao comunismo em geral e à União Soviética (URSS) em especial.

Avultam, entre os «pais fundadores», Robert Schuman e Jean Monnet, sendo que o primeiro é o que estará mais próximo da «santidade», já que, em 9 de junho de 1990, a Igreja Católica abriu um processo de «beatificação» de Robert Schuman, que conta com centenas de testemunhos, tem 50 mil páginas e pesa cerca de meia tonelada - o que é obra. Entretanto, o processo encontrar-se-á na Congregação para as Causas dos Santos, na Santa Sé, mas Robert Schuman já foi declarado «Servo de Deus», o que é considerado como um passo muito importante para a sua «beatificação».

O advogado francês nascido alemão Robert Schuman (1886-1963), foi um político católico de direita, que começou por ser apoiado por empresários siderúrgicos, generais e elementos influentes do clero, aceitando entrar para o Parlamento, entre as duas guerras, para combater o partido laico. Na segunda metade da década de 1930, lutou, aliás, contra o governo da Frente Popular chefiado pelo socialista Léon Blum. Em 1940, foi membro do governo de Paul Reynaud, e em 10 de Julho desse ano foi um dos 569 deputados que votaram a favor da atribuição de plenos poderes ao marechal Pétain. Voltou à Alsácia-Lorena quando o Reich a anexou, mas foi preso e colocado em residência fixa pelos alemães. Em 1942, conseguiu fugir para a «zona livre» e refugiou-se em mosteiros franceses.

Terminada a guerra, Robert Schuman foi chefe do governo em 1946 e ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1947 e 1952, negociando pela França, nessa qualidade, todos os tratados mais importantes do pós-guerra: criação do Conselho da Europa, CECA, Pacto do Atlântico Norte, alterações ao estatuto de ocupação da Alemanha, etc. Como democrata-cristão estabeleceu então relações muito estreitas com a Santa Sé.

Em 9 de Maio de 1950, numa famosa Declaração solene inspirada por Jean Monnet (então Comissário do Plano do governo francês), Robert Schuman propôs ao chanceler Konrad Adenauer a colocação da produção franco-alemã de carvão e de aço sob a tutela de uma «Alta Autoridade», o que implicou a instituição, pelo Tratado de Paris de Abril de 1951, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), ponto de partida essencial da construção europeia, que está na origem da actual União Europeia.

A «Declaração Schuman», como ficou conhecida, não foi, todavia, um acto espontâneo de dois grandes «visionários» (Schuman e Monnet), como pretende a propaganda, mas sim a resposta concreta a uma solicitação premente – que é como quem diz «uma imposição» – dos EUA, com o apoio da Grã-Bretanha, formulada em Novembro de 1949 numa cimeira tripartida dos Aliados (EUA, GB e França), com o objectivo a estabelecer uma aliança económica e política entre a França e a nova República Federal da Alemanha já rendida ao ordoliberalismo, versão germânica do neoliberalismo. Essa aliança constituiu uma etapa essencial da estratégia do containement (contenção e isolamento dos países comunistas) já decidida em Washington.

Robert Schuman foi um dos fundadores, em 1948, do Movimento Europeu, financiado pelos serviços secretos americanos e constituído essencialmente por conservadores (salvo uma ou outra excepção). Com a abertura dos arquivos americanos no ano 2000, ficou a saber-se que o financiamento do Movimento Europeu foi feito através do American Comitee for a United Europe (ACUE), cujos fundos provinham da Fundação Ford, da Fundação Rockefeller e de outras entidades e grupos com estreitas ligações ao governo dos EUA. O chefe da Fundação Ford e também da ACUE era, aliás, um antigo oficial os serviços secretos americanos durante a guerra, o OSS, que viria a ser substituído pela CIA. E não deixa de ser significativo o título que o jornal The Telegrapph atribuiu a um texto publicado em 19 de Setembro de 2000: «Euro-federalists financed by US spy chiefs» (Euro-federalistas financiados por chefes espiões dos Estados Unidos da América). Esclarecedor.

4. Quanto a Jean Monnet (1888-1979), o outro dos mais famosos «pais fundadores» da construção europeia, nunca desempenhou cargos electivos, actuando sobretudo nos bastidores dos governos europeus e americanos. É considerado por muitos como o principal arquitecto da Comunidade Económica Europeia (CEE), antecessora da União Europeia. Grande inspirador da «Declaração Schuman», foi o primeiro presidente executivo da CECA entre 1952 e 1955.

Filho de um produtor da região de Cognac, Monnet começa por desenvolver os negócios do seu pai em Inglaterra, e é precisamente ao lidar com as dificuldades financeiras da empresa familiar que estabelece relações com o mundo dos negócios e da banca dos EUA, país onde acabará por se instalar. Colabora com os Morgan (banco J. P. Morgan Chase) e irá fundar, em 1929, a Bancamérica, situando-se em pouco tempo bem no centro da finança mundial e passando a intervir nos assuntos monetários. Em 1935 está China e empresta dinheiro ao Kuomintang, o partido conservador e nacionalista chinês. É já um autêntico «banqueiro americano», que beneficia da simpatia da Administração do New Deal de Roosevelt. Conhecerá, aliás, todos os principais dirigentes da nova organização dos serviços secretos dos EUA, a Central Inteligence Agency (CIA), que promove discretamente a ideia de criação de uma Europa federal.

Jean Monnet manifesta-se contra a recuperação das soberanias nacionais escrevendo, em 1943, o seguinte:

«Não haverá paz na Europa se os Estados se reconstituírem numa base de soberania nacional, com tudo o que isso implica de políticas de prestígio e de protecção económica (…) Do ponto vista económico, é essencial que e impeça desde a origem a reconstituição de soberanias económicas; por isso mesmo, devia desde já ser solicitado, aos governos no exílio e a autoridades como o Comité Francês de Libertação, o compromisso de não estabelecerem direitos aduaneiros ou de contingentação até à conclusão do tratado de paz». Além disso, defende a «constituição de um Estado europeu da Metalurgia» (que virá a ser a CECA em 1951).

Em suma, nestas ideias de Monnet contêm-se já todos os princípios que hão de ser os pilares do ultraliberalismo: diluição das soberanias nacionais num espaço federal europeu; desenvolvimento universal e sem barreiras aduaneiras do comércio livre, após o estabelecimento de «acordos ultraliberais» entre os Aliados ocidentais.

5. Estamos, assim, perante uma concepção da Europa em que reina «a democracia sem o povo», para citar o título e o tema de um célebre livro do grande constitucionalista francês Maurice Duverger. Ou seja, «estamos bem longe do lugar-comum de uma Europa forjada para a paz e para os povos», como escreveu o jornalista e ensaísta, também francês, Aurélien Bernier, no seu livro intitulado «Désobéissons à l’Union Européenne!», publicado em 2011, e que me serviu de guião para esta intervenção.

«A paz, a cooperação entre os povos, a reconciliação, alimentam os discursos mas mascaram interesses bem menos nobres» - salienta Bernier. «A União Europeia é, desde o início, um inferno pavimentado com belas declarações e más intenções: belos discursos para seduzir e adormecer os cidadãos, e intenções inconfessáveis favoráveis aos interesses das classes dominantes».

E, de facto, os objectivos perseguidos pelos neoliberais confessos desde a década de 1940 revelam-se imutáveis décadas mais tarde. Desde o Tratado de Roma (1957) – cuja «substância real», segundo Margaret Thatcher, decorre da «sua finalidade liberal, de comércio livre e desregulamentadora» –, passando pelo Acto Único (1986), pelo Tratado de Maastricht (1992) – que institui a União Europeia e inicia a caminho para o Euro –, pelo Tratado de Amesterdão (1997), pelo Tratado de Nice (2001) – cujo artigo 4 consagra a economia de mercado e o comércio livre em termos equivalente aos adoptados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) – até ao Tratado de Lisboa (2009), cópia quase integral do Tratado Constitucional para a União Europeia (TCUE), chumbado pelos referendos convocados em França e na Holanda, em 2005.

Todos estes Tratados, que foram sucessivamente adoptados ao sabor da construção europeia, estão essencialmente impregnados pelo neoliberalismo económico. Tanto a livre circulação dos capitais e mercadorias como a livre concorrência – com tudo o que implicam de desregulamentação e abdicação de soberania pelos Estados – estão neles inscritos como princípios fundadores do que sempre tem sido a União Europeia.

6. Há quem diga que a óbvia falta de dimensão o política e democrática da União Europeia, a faz deambular pela cena mundial como um frango sem cabeça. Mas o problema é que a única cabeça que conta, desde a origem, é a cabeça económico-financeira – e essa sempre pertenceu e continua a pertencer à Alemanha.

Para os think tanks ultraliberais – como a já referida Sociedade do Mont-Pélérin fundada em 1947 – a República Federal Alemã criada no pós-guerra foi considerada o terreno ideal para experimentar o seu modelo económico. E de facto, sob a influência dominante dos EUA, a Alemanha Ocidental – traumatizada pela inflação galopante dos anos 1920 – começou logo por adoptar políticas monetaristas visando um controlo estrito da massa monetária, para assim evitar a inflação. E aceitou praticar o comércio livre, a livre concorrência, a liberalização dos preços e as privatizações.

O neoliberalismo assumiu na RFA a forma do «ordoliberalismo», uma criação própria com duas características especiais: por um lado, um quadro legislativo e institucional favorável ao liberalismo económico e, por outro lado, a prática de políticas de sociedade que induzem e impulsionam comportamentos individuais conformes à chamada «economia social de mercado».

Ludwig Erhard (1897-1977) – membro desde 1950 da Sociedade do Mont-Pélérin, ex-consultor da administração militar americana no pós-guerra e membro do partido democrata-cristão CDU, de direita – desempenhou um papel crucial na implantação do ordoliberalismo alemão, enquanto ministro federal da Economia da RFA, entre 1949 e 1963, nos governos de Konrad Adenauer. O seu fundamentalismo ordoliberal levou-o a criticar duramente a França por esta procurar defender o seu modelo social durante as negociações do Tratado de Roma, qualificando as políticas francesas com «romantismo social extremamente perigoso».

Protegida pelos EUA (promovidos a superpotência no pós-guerra), a RFA conheceu um forte crescimento, inflação baixa e grande desenvolvimento das exportações, com o patronato alemão – beneficiado por uma escandalosa reforma fiscal – totalmente favorável a um mercado interno atractivo para os outros países, e completamente hostil a qualquer ideia de harmonização social. Conseguiu assim orientar a construção europeia de acordo com os seus interesses e os do seu protector norte-americano: total abertura dos mercados e rigor orçamental e monetário. Desde então, a RFA nunca mais deixou de dominar a construção europeia.

É hoje muito claro que as orientações definidas pela União Europeia e decorrentes dos sucessivos tratados beneficiam essencialmente a Alemanha, enquanto grande potência exportadora, que mantém a todo o custo a sua competitividade em detrimento dos outros países europeus. O alargamento súbito e brutal da União Europeia permitiu à RFA abastecer-se de produtos semiacabados provenientes dos países da Europa de Leste, o que permitiu reduzir os seus custos de produção e exportar para toda a Europa os produtos acabados, montados na Alemanha.

A recusa da RFA em apoiar a Grécia no período mais agudo da sua crise – assim como as pressões mais ou menos explícitas sobre o actual governo português – ilustra bastante bem a estratégia alemã de exploração de outros países europeus, sempre em defesa dos seus interesses exclusivos.

A União Europeia foi erigida contra o Estado Social, para defender as empresas e o patronato contra os trabalhadores, e o valor do capital acionista contra o valor do trabalho, reduzindo substancialmente os direitos sociais e enfraquecendo o Direito do Trabalho, sobretudo no domínio da contratação colectiva. Todo o percurso da União Europeia, dominada pela Alemanha desde a origem, demonstra claramente a necessidade de questionar o euro e a própria união, batendo o pé e sendo firme na recusa das decisões iníquas da Comissão Europeia, do Conselho Europeu e do Eurogrupo.

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